UM EDITOR VISCERAL
Requisitado por jovens escritores e falido, Pedro Paulo de Sena Madureira relembra convívio com grandes autores.
É uma história de livros que venderam milhares de exemplares e daqueles publicados para atender o seleto grupo de leitores exigentes. Ao Estado, Pedro Paulo de Sena Madureira, de 71 anos, abre as memórias do tempo em que foi editor da Nova Fronteira (1970 e 1980) e da Siciliano (1990 e 2000), quando liderou a renovação do mercado editorial brasileiro e desfrutou da intimidade de escritores influentes.
Quase um 1,90m de altura e corpulento, o carioca do subúrbio do Engenho Velho mora hoje num apartamento em Higienópolis, repleto de lembranças de amigos célebres. Há fotografias, livros e objetos de Umberto Eco, Severo Sarduy, Gore Vidal, Kundera, Lispector, Marguerite Yourcenar, Barthes, Drummond, Canetti, Julien Green, Nélida Piñon, Lygia Fagundes Telles, Octavio Paz e Carlos Fuentes. Ali vive também o artista Carlos Henrique, companheiro há 41 anos.
O imóvel está penhorado. Pedro Paulo, falido. Tentou suicídio duas vezes, em 2005 e 2010. A depressão começou por conta da derrocada do Banco Santos, de Edemar Cid Ferreira. Ele tinha atuado na BrasilConnects, empresa montada por Edemar para realizar megaexposições de arte. “Católico fervoroso, tentei me matar. É um drama na minha vida, mas que é meu”, diz. Avisa que agora tem “preguiça” dessa história de se matar, ao estilo de Macunaíma.
Jovens escritores e a elite paulistana o procuram. Seus veredictos são duros. Um colunista chorou ao saber que o que tinha em mãos não era um Grande Sertão: Veredas. Uma celebridade intelectual foi aconselhada a cortar 180 das 400 páginas de um livro.
A mulher no porta-retrato é Maru, que o acompanhou, primeiro como babá, no casarão dos Sena Madureira, depois como secretária. De vez em quando, ela fazia café para Clarice Lispector, no tempo em que o patrão morava no Leme, vizinho da autora de A Cidade Sitiada. Clarice constrangia desafetos da crítica e ia para a feira como se fosse para a ópera. A escritora era “viciada” em Coca-Cola, sorvete Napolitano da Kibon e cigarro Hollywood. “Ela dizia: ‘Um dos grandes dias da humanidade foi a invenção da Coca-Cola família. Não preciso comprar garrafinhas’”, conta. Não se importava com a fama de difícil nem as marcas no corpo de um incêndio no quarto.
A pinha de louça num canto da sala era do muro do casarão dos Sena Madureira, família de militares e políticos. O patriarca do clã foi o general Antonio de Sena Madureira, nome de ruas, herói na Guerra do Paraguai. Quem comandava a residência era a avó paterna, Alice, professora, socialista, de cultura refinada. No bairro, foi amigo de adolescência do mago Paulo Coelho e conheceu o parceiro dele, Raul Seixas. Era na rua Haddock Lobo, perto do Largo do Estácio, que se encontrava com Jorge Ben Jor, Luiz Melodia.
Entre os vizinhos estavam as famílias do diplomata José Guilherme Merquior e do general Euclides Figueiredo, pai do João Baptista, o último general-presidente. O contato mais próximo de Pedro Paulo com um militar que não fosse Sena Madureira ocorreu mais tarde, em 1979, quando se enfurnou por semanas na casa de Hugo Abreu, em Brasília, para ser o ghost writer do general. O Outro Lado do Poder, publicado pela Nova Fronteira, desancou a candidatura vitoriosa de João Batista, filho de Euclides.
Pedro Paulo e o irmão Antonio foram criados por Alice após a separação dos pais. “Minha avó mandava com delicadeza e sutileza, tinha autoridade absoluta”, lembra. Livros e jornais alimentavam as conversas da casa. A avó resistiu à entrada da TV. Era uma infância de sabores. A memória polida pelas leituras dos romances do francês Marcel Proust lembra a mesa de refeições, centro da casa, que não se desfazia. A avó sentava à cabeceira. Ele sentava ao lado. “Eu não queria me levantar da mesa nunca.”
O primeiro autor que leu foi José de Alencar. Aos 13 anos, já tinha lido toda a obra de Machado de Assis e Joaquim Manoel de Macedo. “Eu tinha um cabedal de leitura enorme e as minhas inquietações eram gigantescas, embora não tivesse angústias. Fui sempre afetivamente amparado”, lembra. Uma tia sugeriu que fosse diplomata. Em 1967, entrou para a Faculdade Nacional de Direito. Ficou apenas dois meses no curso.
Na saída do cinema Paissandu, conheceu Leonardo Fróes, poeta e jornalista que tinha acabado de voltar da Europa. Enquanto comiam pizza e tomavam chope numa calçada, Fróes contou que dirigia a Bruguera. A editora espanhola publicava livrinhos de amor e policiais vendidos aos milhares por jornaleiros, além da revistas do Asterix. Pedro Paulo começou na editora, em Bonsucesso, o ofício de dar “canetadas”.
Aos 20 anos, foi morar com o amigo pianista Breno Marques de Sá. No apartamento, na Lagoa Rodrigo de Freitas, escondiam perseguidos políticos, entre eles o dominicano frei Tito, que se matou depois devido a sequelas da tortura. Nesse tempo veio uma paixão literária. “O evangelho de São João é filosófico, não é narrativo como os demais.” Influenciado pelo evangelho, Pedro Paulo entrou para o mosteiro dos dominicanos, no Rio, depois foi morar com os beneditinos, em Salvador. Ajudava dom Timóteo Amoroso a traduzir para o francês informações sobre torturados pela ditadura que eram divulgadas mundo afora por ativistas de direitos humanos.
Trabalhou com o frade dominicano Bruno Palma nas traduções de O Acaso e a Necessidade, de Jacques Monod, e poemas do francês-antilhano Saint-John Perse. Em 1971, frei Bruno pediu ao filólogo Antônio Houaiss para empregar o jovem na equipe que fazia a enciclopédia Mirador Internacional. Pedro Paulo trabalhou na revisão final dos verbetes. Com a enciclopédia montada, foi trabalhar na Imago, editora do psicanalista Jayme
EDITOR DE UMBERTO ECO, ELIAS CANETTI E OBRAS DE MARGUERITE YOURCENAR
Salomão que publicava Freud. Lá, Pedro Paulo recebeu o telefonema da escritora Clarice Lispector. “Eu preciso de traduções, porque tenho de sobreviver”, pediu a escritora. Em 1975, Clarice traduziu A Rendeira, do francês Pascal Lainé, e Cai o Pano, de Agatha Christie. O segundo livro já saiu pela Nova Fronteira, editora em que Pedro Paulo passou a atuar. A Nova Fronteira era de Carlos Lacerda, ex-governador da Guanabara.
A primeira aposta de sucesso foi o Dicionário Aurélio, projeto financiado pelo antigo BNDE. Lacerda fez questão de agilizar o pagamento do empréstimo. Por receio, tirou a editora da holding de empresas que possuía, compondo uma sociedade limitada. Com a morte de Lacerda, em 1977, o general Golbery do Couto e Silva foi para cima da holding, endividada, de olho na Nova Fronteira. Sérgio, filho de Carlos, avisou que a editora não integrava a holding.
Pedro Paulo se levanta para mostrar clássicos em papel-bíblia da Gallimard. Toda a Bibliothèque de la Pléiade está à venda. Ele quer se livrar dos seus fantasmas. “O bom leitor é um ectoplasma do que está lendo.”
Para sobreviver, o editor teve de vender castiçais da família e monotipias da artista de origem suíça Mira Schendel. “Estou vendendo automóvel para comprar gasolina. Conhece essa expressão? É boa, não é?”, pergunta, como quem encontra uma frase para um personagem. Mostra retratos de santos. “Olha a Santa Terezinha, rica, lavando chão. Eu também lavava chão no mosteiro”, fala. Nem tudo foi sacrifício. Em Paris, os coquetéis depois da feira de Frankfurt eram na casa de Marie-Angel Masson, representante da Nova Fronteira, com garçons e caviar. Em Nova York, alugava um Lincoln preto. “Uma das razões para eu ter sempre acesso a editores, escritores e agentes era que, a exemplo de Carlos Lacerda e Alfredo Machado, da Record, chamava as pessoas para almoçar ou jantar sem restrições.”
Em 1984, Pedro Paulo se entusiasmou com a proposta de criação da editora Salamandra, de Ary de Carvalho, e deixou a Nova Fronteira. “Foi um drama, porque o Sérgio me considerava herança do pai dele.” Carvalho resolveu investir em outros negócios e Pedro Paulo ficou apenas seis meses na Salamandra, mas o suficiente para emplacar o best-seller E por Falar em Amor, de Marina Colasanti. O editor foi trabalhar, então, na Guanabara. Lá, fez um de seus maiores best-sellers, Só é Gordo quem Quer, de João Uchôa Jr., que vendeu mais de um milhão de exemplares.
Pedro Paulo viveu um novo auge na carreira ao aceitar o convite da Siciliano. Na editora, arrancou mais best-sellers, entre eles A Festa do Bode, de Vargas Llosa, e Hilda Furacão, de Roberto Drummond. Em 2003, resolveu sair e fundar, junto a dois sócios, a Girafa. Foi retirado da editora por conta do episódio do Banco Santos.
Sobre o ofício de editor, diz preferir a revisão à caneta, pois a tela do computador determinaria o raciocínio. “Tudo é ideal na tela. Já uma revisão na caneta é a dor, é a tendinite, o torcicolo, o prazer”, define. E, acrescenta, “também a alegria de dizer que ficou ótimo”. Pedro Paulo afirma que editor não é açougueiro. “Não se trata de fatiar a carne do texto. A obra está lá. Um obstetra não inventa a criança”, conclui.
Aos 71 anos e afastado do meio editorial, Pedro Paulo de Sena Madureira relembra seus primeiros anos na profissão e o convívio com grandes autores Pedro P. S. Madureira TUDO É IDEAL NA TELA DO COMPUTADOR. JÁ UMA REVISÃO À CANETA É A DOR, A TENDINITE, O TORCICOLO, O PRAZER, A ALEGRIA DE DIZER QUE FICOU ÓTIMO