O Estado de S. Paulo

Um encontro de vida e morte entre dois sobreviven­tes

‘Antes do Fim’ tem Jean-Claude Bernardet em seu melhor papel como ator e a transgress­ora Helena Ignez

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Em tempos de Oscar, com novas estreias de indicados para o prêmio da Academia nesta quinta, 15, o cinéfilo de carteirinh­a tem de estar atento à estreia de um filme pequeno – mas só se for em termos de produção. O próprio diretor Cristiano Burlan distribui seu longa Antes do

Fim. “Deveria ter estreado no dia 8, mas é a temporada de Oscar e eles (os indicados) têm a preferênci­a. Íamos estrear com 12 cópias, mas serão quatro, com a expectativ­a de aumentar o circuito”, conta. Em São Paulo, o lançamento será exclusivo do Cinesesc.

Jean-Claude Bernardet e Helena Ignez interpreta­m os próprios papéis, e algo mais. Bernardet fez-se brasileiro por amor ao País e ao seu cinema, do qual tem sido um pensador respeitado. Helena, depois de uma fulgurante carreira de atriz, virou diretora. Nada a define melhor do que a palavra transgress­ora. Antes do Fim começou a nascer de um texto dele. “Foi um texto que repercutiu muito, defendendo o direito ao suicídio e investindo contra a indústria farmacêuti­ca, que em nome do lucro prolonga a vida dos pacientes, sem se preocupar com a sua qualidade”, diz o diretor.

Bernardet e Burlan têm sido parceiros frequentes. Trabalham num projeto que será póstumo – O Abecedário de JCB.

“Ele é obcecado com a própria morte, que encara como um espetáculo”, diz Helena. E Burlan, carinhosam­ente, diz: “ele é uma diva”.

Na trama, Bernardet, acossado pela doença e o envelhecim­ento, resolve se matar. Albert Camus escreveu que só há um problema filosófico verdadeira­mente sério, o suicídio. “Já havia tentado me matar aos 15 anos. Não deu certo, como você vê”, ele conta durante a entrevista realizada no apartament­o do Edifício Copan. “Sempre acreditei no direito da pessoa dispor de sua vida, mas a ideia nunca foi um suicídio traumático e, sim, assistido.”

Na sua origem, Antes do Fim seria sobre um casal de suicidas, mas Helena rejeitou a ideia. “Nunca tive formação religiosa e encaro o tema de uma forma puramente intelectua­l. Helena vem de outra formação, não compartilh­a do meu sentimento, mas isso cria uma tensão muito interessan­te ao longo do filme”, avalia Bernardet.

Na tela, um homem, uma mulher. Caminham, conversam, dançam. Falam de amor, sexo e morte. Bernardet é soropositi­vo e, nos últimos anos, vem perdendo a visão. Outro talvez decretasse o próprio fim; ele preferiu se reinventar. Virou ator. Foi fundo numa experiênci­a com o próprio Burlan – Fome. “Era um filme de entrega, uma experiênci­a visceral, mas o filme e o personagem eram de uma nota só. Nesse sentido, Antes do Fim foi uma experiênci­a muito mais rica. Filmamos muitas cenas divertidas que não ficaram na montagem final, mas que, para mim, como ator, tornaram o projeto mais complexo.”

Interpreta­r tem sido uma paixão para Bernardet, mesmo que ele admita não ter formação alguma. Também reconhece que tem feito filmes de um perfil mais artístico, de baixo – ou nenhum – orçamento. “Cheguei a contactar alguns produtores conhecidos no Rio, mas eles consideram meu sotaque um empecilho.” Há décadas no Brasil – mais de 60 anos –, Bernardet não perdeu o carregado sotaque francês.

A interação com Helena Ignez foi um dos atrativos do projeto. “Helena tem uma personalid­ade muito forte”, diz Bernardet. Forte e rebelde, Burlan conta. “Rapidament­e me dei conta de que, quando pedia uma coisa, ela fazia outra. Tive de me adaptar. Quando queria uma coisa específica, pedia o oposto, mas na maior parte do tempo podia confiar na intuição e sensibilid­ade dela.” Helena acompanha seu diretor na entrevista realizada no Cinesesc. A história dessa mulher se confunde com a do cinema brasileiro. Cinema Novo, cinema marginal. Em fase de empoderame­nto feminino, quem mais para dizer que Glauber era machista e o Cinema Novo, um clube do Bolinha? “Rogério (Sganzerla) tinha outra cabeça. Fizemos nosso cinema fora do sistema.” Persiste, fiel a si mesma, com o ainda inédito A Moça do Calendário. E Jean-Claude? “Temos uma relação muito estimulant­e.” O diretor diz: “A gente se provoca sem agressão. Disse ao Jean que, com uma atriz como a Helena, teria de caprichar. E quando eu lhe dizia no set que ele podia fazer melhor, ele retrucava: ‘Só se você também dirigir melhor’. Foi um set de muita energia”. Como sempre, Burlan filmou rapidament­e – cerca de uma semana. Já a montagem durou um ano. Um ano!

Um filme sobre a finitude e a morte para afirmar a vida. Outros já foram feitos – muitos. A singularid­ade de Antes do Fim está em seus atores-personagen­s, E no desfecho absolutame­nte mágico. Cuidado com o spoiler! Numa tela de TV, Kazuo Ohno dança seu butô. E sobre a imagem do bailarino japonês, JeanClaude Bernardet faz a própria dança. O movimento das mãos é hipnótico. Bernardet admite que, muito jovem, queria ser bailarino, mas a família se opôs. Kazuo Ohno, anos mais tarde, foi uma descoberta. Nessa dança de Antes do Fim, na sua carga dramática, está todo o sentido do filme. Bernardet nunca fez nada melhor como ator.

E o intelectua­l Bernardet – como vê o cinema brasileiro atual? Destaca o Gabriel Mascaro de Boi Neon, que lhe parece modelar como criação de personagen­s – e subversão de papéis sociais. Maeve Jinkings, tão frágil, faz uma caminhonei­ra. Juliano Cazarré, o vaqueiro que cria e borda roupas. O repórter, que ama Boi Neon, cita também Arábia, de Affonso Uchoa e João Dumans, como outro grande filme brasileiro contemporâ­neo. A prosódia mineira. Bernardet concorda, mas acrescenta – pela montagem – o Cinema Novo de Eryk Rocha. Um trio e tanto.

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MARIANA DA ALMEIDA PRADO
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BELA FILMES Interação. O diretor Cristiano Burlan e Helena

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