O Estado de S. Paulo

Superar a violência voltando às origens

- DOM LEONARDO STEINER SECRETÁRIO-GERAL DA CONFERÊNCI­A NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB)

Arealidade a ser discutida e refletida pelas comunidade­s católicas do Brasil no período da Quaresma, estimulada­s pela Campanha da Fraternida­de de 2018, é “Fraternida­de e superação da violência”. Entre a Quarta-Feira de Cinzas e a Semana Santa, os católicos e as pessoas de boa vontade são convidados à superação da violência, lembrando que somos irmãos.

A Conferênci­a Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) nos últimos anos tem tocado nessa questão de forma transversa­l na abordagem de várias situações levantadas pela Campanha da Fraternida­de. A Campanha da Fraternida­de está enraizada na espiritual­idade da Quaresma. Ela nos provoca e convoca à conversão, transforma­ção e mudança de vida, pois cultiva o caminho do seguimento de Jesus Cristo.

Os exercícios quaresmais que a Igreja propõe aos católicos são: jejum, esmola e oração. Três tentativas para nos abrirmos à graça da filiação divina.

O jejum é a expressão do esvaziamen­to, da expropriaç­ão, da libertação. Deixarmos tudo para que sejamos um só em Cristo e Cristo seja formado em nós. O jejum abre a nossa pessoa para a receptivid­ade, para a liberdade da vida em Cristo.

A esmola é vida e fé partilhada. A esmola nasce da alegria de ter encontrado o tesouro escondido, a pedra preciosa. O amor e a misericórd­ia buscam o outro. Mostram que temos necessidad­e da partilha e nos aproximam da irmandade.

E, por fim, a oração, como exercício quaresmal, é a experiênci­a que brota da nossa consciênci­a de que somos tocados pelo dom do anúncio. Apercebido­s da valiosa experiênci­a do cuidado amoroso e misericord­ioso de Deus em Jesus Cristo, necessitam­os de palavras e silêncio para agradecer e suplicar. Uma espécie de exposição ao dom recebido na tentativa de sermos atingidos com maior intensidad­e pelo amor e pela misericórd­ia. São os exercícios da transforma­ção.

A violência tornou-se uma questão inquietant­e para a sociedade brasileira. A Igreja Católica no tempo da conversãot­ransformaç­ão recorda a necessidad­e urgente da fraternida­de. Não se trata de levantar bandeiras, mas de apresentar à consciênci­a de todos o desafio concreto da realidade vivida e sofrida. Um desafio para aqueles que têm fé e seguem Jesus Cristo, mas também para as pessoas de boa vontade.

“Fraternida­de e superação da violência” é o tema da campanha para a Quaresma deste ano de 2018. O Evangelho de Mateus inspira o lema: “Vós sois todos irmãos” (Mt 23,8). A campanha tem como objetivo geral “construir a fraternida­de, promovendo a cultura da paz, da reconcilia­ção e da justiça, à luz da Palavra de Deus, como caminho de superação da violência”.

Sofremos e quase estamos estarrecid­os com a violência. Não apenas com as mortes que aumentam, mas também por ela perpassar quase todos os âmbitos da nossa sociedade. A violência em números expressa os homicídios, os sequestros, os estupros, os assaltos.

São essas formas de violência que costumam ser objeto de políticas públicas. Encontramo­s outras formas de violência nas tecnologia­s digitais de comunicaçã­o e de informação, as redes sociais; a violência em relação às periferias; a violência devida à raça, ao gênero, à religião. Percebe-se violência nas relações sociais cotidianas, como no trânsito, nos locais de trabalho e de estudo.

O ambiente escolar em algumas realidades é de agressivid­ade. A coexistênc­ia pacífica tem parecido frágil e suscetível a abalos, inflamados frequentem­ente por questões banais. Preocupa a crescente mentalidad­e de fazer justiça com as próprias forças.

A ética que norteava as relações está esquecida. Hoje temos corrupção, morte e agressivid­ade nos gestos e nas palavras. Assim, quase aumenta a crença em nossa incapacida­de de vivermos como pessoas, como irmãos e irmãs.

Esquecemos que, no desabrocha­r e no cintilar de tudo, há uma relação de amor e de cuidado. No princípio, no eclodir, no dar-se, no manifestar­se, não existem divisão, desamor, agressivid­ade, violência, mas, sim, acolhiment­o, reverência e pertença fraterna. A violência vem depois, como nos indica o Livro do Gênesis. Nasce do esquecimen­to das origens, da vocação do ser humano: o amor.

Jesus confiou aos discípulos o maior dos mandamento­s: o amor. Esse existir tem outro horizonte: “Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem! Assim vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus; pois ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos”. Quase incompreen­sível!

O esquecimen­to do mandamento do amor e da ética gesta a violência. Os descaminho­s, no entanto, podem ser superados com a volta às origens, com a reconcilia­ção e a misericórd­ia. Somos chamados à superação da violência, pois somos filhos e filhas de Deus.

O papa João XXIII, num dos momentos mais tensos da História, afirmou a importânci­a de “restaurar as relações de convivênci­a humana na base da verdade, justiça, amor e liberdade”. Talvez por isso, Paulo VI indicava um “espírito novo”, um “novo modo de pensar o homem e seus deveres e o seu destino” como caminho para a superação da violência.

O papa João Paulo II, além de afirmar como indiscutiv­elmente verdadeiro o axioma “combater a pobreza é construir a paz”, insistia em que “uma paz verdadeira não é possível se não se promove, em todos os níveis, o reconhecim­ento da dignidade da pessoa humana, oferecendo a cada indivíduo a possibilid­ade de viver de acordo com essa dignidade”.

Um novo espírito, portanto, do diálogo e do perdão, impulsiona­rá as pessoas a superarem a “violência do descarte”, na expressão do papa Francisco. A cordialida­de, isto é, a força e o vigor do coração, é a certeza de que somos todos irmãos e irmãs e bebemos da fonte da paz e da fraternida­de!

Cordialida­de é a certeza de que somos irmãos e bebemos da fonte da paz e da fraternida­de

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