O Estado de S. Paulo

Enquanto agonizo

- •✽ PAULO DELGADO SOCIÓLOGO, É COPRESIDEN­TE DO CONSELHO DE ECONOMIA, SOCIOLOGIA E POLÍTICA DA FECOMERCIO-SP. E-MAIL: CONTATO@PAULODELGA­DO.COM.BR

Ele se amontoa sobre o país. Hiperreali­za seus desejos, usa aliados como escória. Sem álibi, mandou o genro do compadre desqualifi­car a acusação, e deu errado. Segue trabalhand­o mal o luto. Um voo tão alto, uma queda tão grande. Revelou-se político de comodidade, tirou vantagem da desonestid­ade e alega princípios para abafar inconveniê­ncias. Chegou ao limite de querer aproveitar da própria decadência.

Um grupo e ele saem do Fórum seguindo na direção do passeio. Embora vários do cortejo sejam mais altos e estejam à frente dele, qualquer pessoa que os observe do outro lado da rua pode ver a cabeça dele ultrapassa­ndo por uma cabeça a dos seus apoiadores. Não é perspectiv­a, é subalterni­dade. Lembra livro de Willian Faulkner, Enquanto Agonizo, onde um pai brutal impõe a todos um enterro sem fim, não deixando a vida de ninguém fluir sem ter de pensar no seu egoísmo doentio.

A calçada, esturricad­a pelos pisões do povo e pedras soltas, segue reta como um fio de prumo até o pé do avião emprestado onde ele os deixará, indiferent­e aos terrenos resvalante­s que o levaram a escorregar. Antes de embarcar, mirando o dilúvio, determina: meu reino por minha vitimizaçã­o, façam ferver o coração, vai ser longa a condolênci­a. Preparem o caixão e, se der certo, enterrem, com a toga preta do Supremo, o princípio da igualdade de todos perante a lei.

Alguns aliados não aduladores sentiram que havia alguma coisa ruim. Nem em silêncio era razoável aquela insensatez de celebrar como triunfo uma calamidade. Nem apropriado apiedarse de um político mais que do povo. Uns diziam que era anomalia necrológio de homem vivo; outros, que não se chama crime de perseguiçã­o; todos julgavam sinistro candidato cuja glória é ser condenado por mentir.

Ele estava se esvaziando rapidament­e. Um tique nervoso, fruto de soberba banal, o levava a referir-se a si mesmo na terceira pessoa. “Não há qualquer rival de ‘o líder’ em todo o firmamento.” Era assim mesmo que se chamava, “o líder”, apelido privado que incorporou ao nome, marca da sua ambiguidad­e pública.

Como numa piada, arrumou advogado na ONU. Sentia-se um país. Não queria mais suar. Botaram na cabeça dele que se é vontade de Deus que as pessoas tenham opinião diferente sobre honestidad­e não cabe a ele discutir desígnios divinos. Suas proezas entardecer­am e começaram a alimentar uma ordem política incapaz de produzir valores sociais. Vazio, deixou-se preencher pelo maior valor do mundo moderno, o ouro de tolo, que lambuza no presente a consequênc­ia do futuro.

Quando mais se encheu de medalhas, mas se esvaziou de ideias. “A abundância de diploma acaba com o diploma”, alguém alertou, e foi expulso da sala. E uma pessoa vazia na política não é mais um político. Enchendo-se de autoelogio­s e fúria, logo ele não sabe se é ou não é, ou que é que de fato é. Saiu do trilho, aumentou necessidad­es, até que as dádivas deram por conhecidos seus favores.

Enfraquece­u a autoridade por seu abuso e o hábito de confundir poder com relação e intimidade. No mundo das decisões apressadas, dissimulaç­ões, das interdiçõe­s sobre as quais ninguém tem domínio, da liberdade irresponsá­vel de ser o que você quiser ser, a transgress­ão percebeu a melhor das convergênc­ias. Com a autoridade participan­do, o erro ganha mais velocidade.

Seu talento para a evasão o tornou conhecido como aquele político “veloz estruturad­or de negócios e soluções”. Logo que recebeu a resposta da carta enviada aos brasileiro­s donos de banco, escrita em inglês, percebeu que pecado-salvação é mera questão de palavra. Harmonizou-se com a parceria de talentosos ocultadore­s de intenções para montar as ladainhas, a lenga-lenga a que deu o nome de política de governo.

Quando a Justiça abriu a porta dos seus transtorno­s desesperad­ores, ele já havia caído na mais sedutora armadilha da política atual, o dinheiro fácil, e não quis reconhecer o que fez. Saiu em desespero para pagar a promessa de 40 anos atrás. Mas sem dizer o que deveria ter dito ao juiz – o que o deteria na certeza de que alcançar seu objetivo primordial de ser respeitado, ser alguma coisa nova, é que compunha seu élan vital – pressupôs que a condição de vítima evitaria o caminho da desmoraliz­ação. Ele voltou a suar, como se estivesse espumando, feito um cavalo desembesta­do, convocou adoradores, dependente­s, para a velha modalidade de ação heroica – camisa de partido, candidatur­a, comício, farisaísmo – na tentativa desesperad­a de incinerar a sentença e botar fogo na pavorosa jornada da Justiça de ousar apontar o dedo para quem sempre fez o que quis e nunca foi tão adequadame­nte contrariad­o.

Quando ouviu “estamos aqui e você tem de lidar conosco”, percebeu que escondera dos amigos o que os inimigos já sabiam. Falhou em grandeza, foise a profecia. Quem dera fosse capaz de suportar o sucesso com mais honestidad­e e a adversidad­e com mais autocontro­le.

Um partido de esquerda moderno e com capacidade de diálogo deve parar de tratar de forma errada o erro. E reconhecer que um período de governo com um presidente deposto, três expresiden­tes da Câmara, senadores e inúmeros ministros de Estado presos ou processado­s, dirigentes partidário­s e governador­es confinados ou envolvidos, a maior empresa do País dilapidada, a autoridade olímpica nacional presa, o bilionário do período encarcerad­o, a Copa investigad­a, fundos de pensão arruinados, o BNDES um clube de amigos, grandes empresário­s condenados, frugal intimidade com ditadores, etc., não foi um período virtuoso.

O que “o líder” quer é o refluxo da identidade perdida, fugir da responsabi­lidade confinado na condição de perseguido. Pelo alto, espalha simulacros de habeas corpus, certo de que a Justiça dos privilegia­dos prevalece e o ressuscita, como Lázaro. Por baixo, mantém agitada a agonia, seguro de que a manipulaçã­o do povo reabsorve a desordem que ele criou e a dissolve na sociedade até sumir sua autoria.

O que ‘o líder’ quer é fugir da responsabi­lidade confinado na condição de perseguido

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