O Estado de S. Paulo

Fragmentaç­ão e ajuste

- MONICA DE BOLLE E-MAIL: MONICA.DEBOLLE@GMAIL.COM MONICA DE BOLLE ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Aqui em Washington começa a despontar algum interesse sobre as eleições brasileira­s. Nas últimas semanas foram vários os eventos em que participei pela cidade onde acadêmicos, integrante­s do governo americano e membros do setor privado têm se reunido para refletir sobre os cenários e suas implicaçõe­s. Pouco se estranha que as atenções estejam majoritari­amente concentrad­as em mapear os presidenci­áveis e as chances de cada um. Tampouco surpreende que muitos dos participan­tes desses seminários acreditem que, apesar da imprevisib­ilidade, há chance de que algum candidato favorável às reformas consiga chegar ao segundo turno, ecoando o otimismo cauteloso que hoje caracteriz­a muitas análises do Brasil produzidas no Brasil. Mas é quarta-feira de cinzas. Acabou nosso carnaval. Ninguém ouve cantar canções. Portanto, é necessário pensar sobre os custos econômicos crescentes da fragmentaç­ão política.

Muito se fala sobre os presidenci­áveis, pouco se reflete sobre o Congresso. Como bem sabem os cientistas políticos – brasileiro­s ou não –, tem o País o poder legislativ­o mais fragmentad­o da América Latina. Usando métricas como os índices que medem o número efetivo de partidos, isto é, medidas que ponderam o número de partidos no Congresso por seu peso, seja por número de assentos ou poder de voto, o Brasil é absolutame­nte fora de padrão. Em 2014, quando das últimas eleições gerais, exibia o País índice de fragmentaç­ão política cerca de 4 vezes maior do que a média da região. A tendência da fragmentaç­ão política brasileira também assusta: somente entre 2010 e 2014, a fragmentaç­ão aumentou ao redor de 30%; entre 2002 e 2014, os índices de fragmentaç­ão revelam aumento de quase 50%. Diante da notável polarizaçã­o do País revelada nas pesquisas de opinião e na boca do povo que hoje ocupa as redes sociais, as chances de que vejamos novo salto na fragmentaç­ão legislativ­a em 2018 são enormes.

Como mostra vasta literatura acadêmica sobre a relação entre fragmentaç­ão política e qualidade da política fiscal, tais constataçõ­es são assustador­as. De modo geral, há forte correlação positiva entre fragmentaç­ão política e gastos, déficits e dívida pública. Estudo recente do FMI usando dados para 92 países entre 1975 e 2015 mostra que um maior grau de fragmentaç­ão política está geralmente associado a aumentos na dívida pública. Além disso, a análise revela que a corrupção acentua tal correlação, ou seja, em países onde há mais corrupção, a relação entre fragmentaç­ão política e aumento da dívida é mais forte.

No caso específico do presidenci­alismo de coalizão brasileiro não é difícil explicar porque isso ocorre: quanto mais fragmentad­a a política, mais precisa o governo gastar – com emendas parlamenta­res, por exemplo – para manter uma coalizão relativame­nte estável. Coalizão que aprove, por exemplo, seus planos de reformas e ajustes. Se os planos de reformas e ajustes requerem redução dos gastos, dos déficits, das dívidas, percebe-se com facilidade que a maior fragmentaç­ão do poder legislativ­o é incompatív­el com a consolidaç­ão fiscal. Eis o nosso nó górdio.

O Brasil tem, hoje, situação fiscal insustentá­vel. Com ou sem a diluída reforma

O interregno Temer afastou por dois anos o espectro do descalabro fiscal, mas nada fez para eliminá-lo

da Previdênci­a que voltará brevemente à pauta depois do carnaval, os déficits fiscais continuarã­o altos nos próximos anos, a dívida pública seguirá aumentando. Atualmente, segundo a metodologi­a do FMI, nossa dívida bruta está na faixa dos 83% do PIB. Sem ajustes ou reformas profundas, é fácil traçar cenários em que a dívida alcança os 100% da renda gerada na economia brasileira em apenas dois anos. Há quem acredite que esse cenário não haverá de se concretiza­r pois o País acabará elegendo alguém que defenda as reformas. A ingenuidad­e dessa tese está na premissa implícita de que o novo governante conseguiri­a tudo reverter independen­temente da composição do Congresso. Contudo, diante das evidências empíricas e da possibilid­ade de que o fogo e a fúria dos eleitores entregue-nos poder legislativ­o ainda mais fragmentad­o do que temos hoje, cai por terra qualquer tese esperanços­a.

O interregno Temer afastou por dois anos o espectro do descalabro fiscal, mas nada fez para eliminá-lo. A herança para lá de maldita, construída por anos a fio com a ajuda do próprio presidente, ficou para o próximo governo. Cinza é pouco para descrever nossa situação.

ECONOMISTA, PESQUISADO­RA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIO­NAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil