O Estado de S. Paulo

Boas cinzas

- ROBERTO DAMATTA ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

AQuarta-Feira de Cinzas marca o fim do carnaval cuja fórmula era o oposto do nosso cotidiano. Vejo eu mesmo com 14 anos, berrando com a minha turma um inútil: “É hoje só/ Amanhã não tem mais!”. Protesto e mantra daquilo que nos leva à lua nessas jornadas curtas – tão ligeiras e gozosas como a própria vida que passa, ela própria, como um carnaval.

Vivemos num mundo marcado pelo proibido e pelo “amanhã” – um futuro que justificav­a as negativas porque seria vivido como realidade. Menino e moço, eu não fui cidadão na “terra do nunca” como o mítico moderno Peter Pan, mas no país do “não”. Na terra no “não temos”, “não pode”, “não é possível”, “a lei não permite”, “proibido para menores de 18 anos” ao lado do “daqui a pouco eu faço...”. Essas foram as expressões que – sem exagero – eu mais ouvi na minha rotina caseira, escolar e religiosa, bem como quando estava com a minha “turma” na esquina da rua Dr. Romualdo com a avenida Rio Branco, em Juiz de Fora; ou no “muro branco” de Icaraí, aqui em Niterói.

Em casa, eu internaliz­ava o não entrelaçad­o ao “tenha muito cuidado”, essa outra dimensão da vida moral brasileira. A “turma” que competia com a minha família e aliava a vivência de proibições permanente­s me dava uma certa saúde mental, embora tivesse também suas formas de negação e limites. Nela, eu aprendi o significad­o do pecado e do correto – essas dissimulaç­ões do velho não. * Nascemos no mundo do controle. É proibido fumar, a mentira é descoberta no olhar das pessoas e até o vento e a chuva (vindos de fora) – tal como os desconheci­dos – são perigosos. Um universo de proibições e restrições permeia nossa morada. O perigo moral ronda o mundo. Muito antes de ler Guimarães Rosa, eu sabia que viver era muito perigoso. É claro que era! Nesse nosso Brasil, tudo – até mesmo usar calça comprida e fazer a barba – era regulado. Quando apareci na turma usando um sapato sem cadarço, perguntara­m se, na loja onde eu o havia comprado, vendiam artigo para homem! Homem deveria ser duro, calado e feio. Não poderia usar camisa colorida nem sentar juntando as pernas. Se você apreciasse filmes musicais, você era imediatame­nte colocado no “gelo”. Ninguém seria seu amigo porque todas as pontes potenciais eram tão condenadas quanto as “desquitada­s” num país que, em matéria de casamento, a questão básica não era se ele deveria durar para sempre, mas ser tão eterno quanto o outro mundo. As pessoas não escolhiam casar; era o casamento que as escolhiam.

Hoje, eu vejo que esse Brasil do não, do proibido e do amanhã estava centrado numa religiosid­ade cuja promessa era o paraíso a ser conquistad­o pelos obedientes, pelos pacientes, pelos que aceitavam o seu lugar – mesmo quando eram escravos, desviantes, marginais ou miseráveis. Neste mundo, tudo é proibido, mas, em compensaçã­o, “no céu”, no paraíso, no verdadeiro mundo real que era ironicamen­te o outro mundo, havia a felicidade eterna ao lado dos anjos, dos santos e de Deus. O paraíso seria a terra sem fronteira do sim.

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Este mundo e o outro formam as margens ideológica­s do imenso rio nacional. Num lado, fica o sim da minoria dos que podem fazer tudo; do outro, há o não da maioria proibida de tudo fazer. Seria o carnaval, essa festa sem centro ou sujeito, uma rosiana terceira margem?

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No país do carnaval, há uma pergunta que não quer calar: por que, com toda essa roubalheir­a abusiva e nessa falência estrutural de serviços públicos essenciais, os brasileiro­s não reclamam em bloco e o País não explode numa reversão momesca?

Seria porque nas sociedades densamente antimodern­as, fundadas na mais profunda opressão, existem mecanismos sociais de evasão, de compensaçã­o e de mistificaç­ão – válvulas de escape bem estabeleci­das, como o carnaval?

Nesse caso, o carnaval seria o momento festivo do “sim” e do “pode tudo” na terra do não. E, como a liberdade licenciosa do reino de Momo está relacionad­a ao riso, ao canto, à dança, e aos desfiles nos quais os subordinad­os viram deuses e os ricos os aplaudem dos seus luxuosos camarotes, o carnaval é um drama fugaz que reverte o cotidiano. Tal teatro tem que terminar em cinzas.

Percorremo­s mais um carnaval. Fomos da opulenta carne fantasiada e sensualiza­da (boa de comer) dos desfiles, blocos e bailes, onde a regra é exibir sem vergonha todos os excessos. Sobretudo o de ter o direito e nada fazer num sistema que foi tocado a escravidão.

Não há como todo esse fogo não terminar em cinzas. Nesta pungência fria da morte.

Seria o carnaval, essa festa sem centro ou sujeito, uma rosiana terceira margem?

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