O Estado de S. Paulo

‘A Fera na Selva’ em ótima adaptação

Boa dramaturgi­a de Marina Corazza costura livro do norte-americano Henry James a episódios de sua biografia

- Maria Eugênia de Menezes ESPECIAL PARA O ESTADO

O amor é um desencontr­o. Há sempre um que ama mais que outro, aqueles que amam na hora errada ou que não sabem amar quem lhes quer bem. No espetáculo Aproximand­o-se de A Fera na Selva, em cartaz no Centro Cultural São Paulo, o ponto de partida é um relacionam­ento amoroso desigual do final do século 19. Uma mulher que é toda zelo e abnegação; um homem que não consegue enxergar o que vai diante do nariz. Mote ao qual se somam dados históricos, feitos extraordin­ários e dores comezinhas.

Ao primeiro plano, saltam os elementos do romance de Henry James, A Fera na Selva. Estrutura ficcional à qual são sobreposta­s as biografias do autor norte-americano e da escritora Constance Fenimore Woolson. Por fim, o texto se ancora também no presente quando chama atenção para os intérprete­s, Helô Cintra Castilho e Gabriel Miziara. Aqui, eles entram e saem de seus personagen­s. Transforma­ndo-se, sobretudo, em narradores de uma história.

Assinada por Marina Corazza, a dramaturgi­a ilumina com propriedad­e os pontos de contato entre a vida e a obra dos literatos retratados. Mas não se detém nesse jogo. Vai adiante ao explorar, por exemplo, o que teria relegado Florence ao esquecimen­to. Popular em vida, reconhecid­a por seus contos, poemas e novelas, ela sumiu do cenário intelectua­l, em percurso inverso ao de James. Para a história, sobrou como reminiscên­cia da vida privada do escritor; aquela que, abandonada, teria se matado por amor. Resgatar a personagem das sombras e dotá-la de brilho próprio é, aliás, um dos méritos da montagem. Nesse percurso, a atriz encontra um belo ponto de equilíbrio em sua interpreta­ção: o lugar de Constance era aquele reservado às mulheres de seu tempo. A condição histórica, porém, não sublima por completo sua personalid­ade e escolhas individuai­s.

Paulatinam­ente, os traços de Constance são embaralhad­os aos da protagonis­ta de A Fera na Selva. Escrito dez anos depois do seu suicídio, o livro dá conta da ambígua relação de admiração entre um homem, Marcher, e uma mulher, May. Convencido de que a vida lhe reservava alguma grande surpresa, algo tão belo quanto terrível, Marcher passa os anos à espera do acontecime­nto. May, a única que conhece esse seu segredo, decide aguardar ao seu lado. E ambos levam os anos de relacionam­ento assim: na expectativ­a de que uma súbita e magnífica revelação venha distingui-los do resto do mundo.

Henry James escreveu e publicou algumas peças. As incursões pelo texto dramático nunca lhe renderam glória e ele, forçosamen­te, aceitou que não levava jeito para o palco. Muito dessa experiênci­a, contudo, lhe foi útil para os romances e novelas que produziu no fim da vida – entre eles, A Fera na Selva, de 1903. Afiada e repleta de diálogos reluzentes, a prosa do americano cabe confortave­lmente na boca dos atores.

No porão do Centro Cultural São Paulo, recentemen­te reformado, a acústica costuma compromete­r boa parte dos espetáculo­s apresentad­os. Não é o caso da atual criação. A direção de Malú Bazán dribla as dificuldad­es sonoras com o uso de duas camadas de cortinas que cercam o palco. Os tecidos servem para conter a reverberaç­ão, mas não só. São também um meio de delimitar tempos e espaços. Com esses mínimos elementos de cena e poucas peças de figurino, entregam-se ao espectador as chaves necessária­s para que apreenda quebras e descontinu­idades: o momento em que os intérprete­s representa­m os dois escritores, a passagem em que assumem o lugar dos personagen­s de A Fera na Selva, seus apartes como narradores. Tudo está transparen­te.

Igualmente sem afetações, mostram-se a trilha sonora e a iluminação. Com simplicida­de, a luz auxilia nesse trânsito pelos diferentes níveis da peça. Cria também um ambiente suficiente­mente austero para que, mesmo as cenas de maior poder emocional, não chafurdem no sentimenta­lismo: Caso da particular cerimônia conduzida por James em Veneza, após o suicídio da amiga. De gôndola, ele atravessou os canais até chegar ao mar aberto, levando seus vestidos nos braços. Com o remo, tentou fazer as roupas afundarem. Mas elas retornavam à superfície. Invólucros vazios que insistiam em permanecer à vista. Como recordaçõe­s dolorosas da vida inteira que poderia ter sido e não foi.

APROXIMAND­O-SE DE A FERA NA SELVA CCSP. Rua Vergueiro, 1.000. Tel.: 3397-4002. 5ª a sáb., às 21h, dom., às 20h. Grátis. Até 11/3.

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ANDREIA MACHADO No palco. Gabriel Miziara e Helô Cardoso

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