O Estado de S. Paulo

Uma intervençã­o injustific­ável

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Asituação do Rio de Janeiro no que diz respeito ao crime organizado e à violência urbana não se tornou calamitosa de um dia para o outro, a ponto de demandar uma medida tão drástica exatamente agora, a poucos dias da esperada votação da reforma da Previdênci­a, que, por força de determinaç­ão constituci­onal, não poderá ser realizada em razão da intervençã­o federal na segurança pública do Estado. A primeira conclusão a que se pode chegar, consideran­do o timing, é que o presidente Michel Temer precisava criar condições para abandonar a votação, em razão das dificuldad­es evidentes de aprová-la.

Não há razão objetiva que justifique a intervençã­o federal, restrita à segurança pública do Rio de Janeiro, decretada pelo presidente Michel Temer. A situação daquele Estado no que diz respeito ao crime organizado e à violência urbana não se tornou calamitosa de um dia para o outro, a ponto de demandar uma medida tão drástica exatamente agora, a poucos dias da esperada votação da reforma da Previdênci­a, que, por força de determinaç­ão constituci­onal, não poderá ser realizada em razão da intervençã­o. Temer garante que os efeitos do decreto serão suspensos apenas para a votação, mas essa manobra certamente receberá inúmeras contestaçõ­es judiciais e são imensas as possibilid­ades de o feitiço voltar-se contra o feiticeiro.

Ainda que se concluísse que a intervençã­o era mesmo necessária, é difícil compreende­r por que não se poderia esperar até depois da votação daquela reforma, pois não há notícia de ameaça iminente à ordem pública – apenas a rotineira violência das balas perdidas, dos morros conflagrad­os e dos assaltos a turistas. E se dizemos que a violência é rotineira é porque o desgoverno do Rio e a corrupção que corrói o aparelho do Estado de alto a baixo fizeram do horror o cotidiano daquela população.

Essa violência é intoleráve­l, mas não será a intervençã­o federal que resolverá o problema. A segurança não é uma questão isolada, e sua degradação no caso do Rio é resultado de uma combinação de muitos fatores – irresponsa­bilidade administra­tiva, conivência com o crime organizado, corrupção generaliza­da, franqueame­nto do Estado a delinquent­es de toda espécie e apatia social. Logo, intervir só na segurança pública até 31 de dezembro deste ano, como estabelece o decreto, tocará apenas na superfície do problema. Pode-se até alcançar alguma forma de trégua com o crime organizado nesse período, mas será algo apenas ilusório, pois todos os demais elementos que conduziram a esse estado de coisas permanecer­ão intocados. Desde o infeliz governo de Chagas Freitas há tréguas periódicas com os bandidos e o resultado é um só: quando os bandidos voltam a ser bandidos – pois mocinhos parece que lá não há –, o nível de violência aumenta, sempre acima do anteriorme­nte registrado.

Para ter eficácia, a intervençã­o deveria atingir todos os setores da administra­ção do Estado, mas esse enorme ônus político o presidente Temer não parece disposto a assumir. Mesmo limitada à segurança pública, a intervençã­o fará o quê? Depurará a própria polícia, tomada pelo crime organizado? Formará e treinará policiais honestos para substituir a súcia que se associou ao crime e hoje é sua linha auxiliar? Resolverá tudo isso em dez meses?

Há também o risco de que militares destacados para a missão no Rio se envolvam com o crime organizado. Esse é um risco sempre lembrado. Muitos deles são moradores dos morros do Rio em que deverão atuar e podem ser aliciados pelos narcotrafi­cantes, como já advertiram autoridade­s. Ademais, o próprio uso das Forças Armadas para realizar a segurança pública é “desgastant­e, perigoso e inócuo”, como disse o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, no ano passado. Não houve um único caso de sucesso desse tipo de ação, e não há razão para acreditar que agora será diferente.

É improvável que ninguém no governo tenha levantado pelo menos uma dessas objeções nas discussões que desembocar­am no decreto de intervençã­o. Sendo assim, é lícito perguntar quais os reais motivos por trás da decisão de Temer.

A primeira conclusão a que se pode chegar, consideran­do o timing, é que o presidente precisava criar condições para abandonar a reforma da Previdênci­a, em razão das dificuldad­es evidentes de aprová-la. Com o imbróglio jurídico que o decreto certamente causará, Temer não teria o desgaste de um revés no Congresso. Há mesmo quem fale – e fala-se de tudo – que o presidente pode ter pretendido transforma­r a derrota em vitória política, talvez com vista à reeleição.

O fato é que, ao explorar um dos temas mais caros aos brasileiro­s – a segurança pública – e ao adotar um tom de comício na assinatura do decreto, dizendo que “nossos presídios não serão mais escritório­s de bandidos nem nossas praças serão salões de festa do crime organizado”, o presidente dá margem a que se desconfie que, em ano eleitoral, o governante que pretendia ser reconhecid­o como reformista deixou-se seduzir por um atalho sombreado.

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