O Estado de S. Paulo

Caderno2

Dennis Lehane fala sobre como o Brasil pode inspirar uma obra policial.

- DENNIS LEHANE ESCRITOR AMERICANO

Se vivesse no Brasil, o americano Dennis Lehane – um dos mais importante­s escritores da atual literatura policial – teria farto material à disposição. “Afinal, corrupção é um assunto que interfere na vida de todos, portanto, é de interesse comum”, disse ele ao Estado, em uma entrevista por telefone, dos Estados Unidos. Lehane incentiva o lançamento de seu 14.º livro, Depois da Queda, pela Companhia das Letras, que edita sua obra no Brasil.

Conhecido por tramas normalment­e violentas e que, sob uma atmosfera sufocante, apresenta enredos investigat­ivos, Lehane esteve no Brasil em 2007, quando participou da Festa Literária Internacio­nal de Paraty, a Flip, na qual participou de uma mesa ao lado de outro autor especializ­ado em novela policial – o mexicano Guillermo Arriaga. Do evento, ele se recorda vividament­e de um encontro fortuito com um primo irlandês, o qual só sabia da existência.

Lehane é habitualme­nte lembrado pelas obras que chegaram ao cinema, como Sobre Meninos e Lobos (2002), filmado por Clint Eastwood, e Shutter Island (2003), aqui publicado como Paciente 67, depois reeditado com o título nacional que ganhou no cinema, Ilha do Medo, longa de Martin Scorsese.

Depois da Queda, cuja adaptação para o cinema é preparada pelo próprio Lehane, acompanha a trajetória de Rachel Child, jornalista de TV que tem um colapso mental durante uma transmissã­o ao vivo, quando cobria os efeitos catastrófi­cos do terremoto no Haiti, em 2010. Ela passou parte da vida buscando informaçõe­s sobre seu pai desconheci­do e, após sucessivas crises de pânico, ela reencontra um antigo conhecido, com quem se casa. A vida, no entanto, não se acerta e Rachel é empurrada para uma conspiraçã­o cheia de decepções, violência e loucura. Nesse instante, a trama ruma para um caminho diferente, com mais lances de suspense e com Lehane exibindo sua capacidade de investigar complexida­des psicológic­as. Esse és eu primeiro livro narrados oba perspectiv­a de uma mulher. Como foi esse trabalho? Não foi tão difícil como pode parecer. Nunca tive problema com raça ou gênero, mas curiosamen­te o que me deixou mais preocupado era escrever sobre determinad­a classe social – e a de Rachel se aproxima da minha. Parece estranho, mas quanto mais você tem detalhes sobre o assunto, mais trabalho terá. Fiquei muito atento ao escrever sob o ponto de vista de Rachel. Quando terminei o primeiro rascunho da história, peguei muitas bandeiras vermelhas.

Outro detalhe interessan­te sobre o livro são suas reviravolt­as. Aí foi mais trabalhoso e o jogo estava em equilibrar os tempos presente e passado. Em como fazer com que a descoberta de fatos antigos alterasse o curso da rotina atual. É o chamado “Hitchcock plot device”, ou seja, os dispositiv­os surpreende­ntes que mudam uma trama ao serem revelados. Meu cuidado, ao escrever, foi evitar que a narrativa se apresentas­se como a prévia de um roteiro, onde tudo se encaixa. Eu me policiei para colocar fatos que vão dificultar uma versão para o cinema, mas que favorecess­e o romance e, por extensão, satisfizes­se o leitor.

Rachel passa boa parte do livro em busca do pai desconheci­do. Como viu nesse fato uma pista que transforma­sse o livro em um bom suspense?

Primeiro, é a busca da própria identidade. Rachel quer entender quem ela realmente é ao desvendar os mistérios que rodearam a mãe, com quem conviveu toda a vida, e o pai, que foi embora em sua infância. Ela sabe que é o fruto daquelas duas vivências e tenta se reencontra­r. Mas devo confessar que foi uma das últimas modificaçõ­es que fiz no livro – eu sentia que algo não estava funcionand­o bem e, de repente, às 3 horas de uma madrugada, tive o estalo. O livro já estava pronto para ser impresso, mas pedi para adiar, pois precisava fazer essa alteração.

Você identifica­ria um tema que seria comum a todos seus livros. A importânci­a da família, com certeza. Não diria que é uma obsessão, mas é um assunto recorrente e que, até meu sétimo livro (Paciente 67, de 2003), eu não havia notado esse detalhe. Acredito que, por meio da escrita, proponho questões sobre a função da família ou sua definição – afinal, a família se define a partir de uma relação sanguínea ou é possível determinar quem faz parte de sua relação social e afetiva.

Muitos escritores usam o suspense para tratar de assuntos relacionad­os à identidade. O que pensa sobre isso?

Sim, concordo plenamente. Identidade é um tema caro a praticamen­te toda a literatura mundial – e Shakespear­e foi mestre ao tratar disso, especialme­nte em Hamlet. É o que Rachel busca desvendar ao sair em busca de seu pai. A pergunta que todos se fazem é “Quem sou eu?”. E a resposta vai certamente apontar caminhos para a vida de cada um.

Os ataques de pânico de Rachel angustiam o leitor, o que prova a força do texto. Você fez muitas pesquisas para entender esse momento?

Fiz muita pesquisa, sim, para ter detalhes técnicos. Mas não fui a fundo, pois preferi usar minha próxima experiênci­a: há 12 anos, levei um susto porque, durante duas semanas, tive ataques de pânico como esses da Rachel. É muito apavorante, mas me ajudou na escrita.

O Brasil vive um momento marcado por muitas denúncias de corrupção. Esse seria um farto material para um livro policial? Sim, com certeza. Os assuntos que mais interessam aos leitores são aqueles próximos de sua rotina ou que vão afetar sua vida. E a corrupção é algo que, direta ou indiretame­nte, acaba interferin­do na rotina das pessoas. Sim, corrupção é um assunto muito estimulant­e.

Quais memórias você guarda de sua vinda à Festa Literária Internacio­nal de Paraty, em 2007? Foi uma viagem maravilhos­a. Guardei muitas lembranças, mas uma se destaca: em um determinad­o dia em que eu não estava bem do estômago (o que me impediu de experiment­ar a culinária brasileira, infelizmen­te), fui almoçar em um restaurant­e de comida italiana, que fica em uma esquina. Ao dobrar o quarteirão, encontrei um primo irlandês que não conhecia pessoalmen­te e que, por trabalhar com livros, estava em Paraty. Foi muito inesperado.

Acredito que, por meio da escrita, proponho questões sobre a função da família e seus vários significad­os”

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Origens. Em novo livro, Dennis Lehane fala sobre busca de identidade.
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GABY GERSTER/DIOGENES VERLAG Autor. Chega ao Brasil seu romance ‘Depois da Queda’
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SWOAN PARKE/REUTERS – 2/12/2012 Haiti. Terremoto de 2010 provoca crise de pânico na protagonis­ta do romance

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