O Estado de S. Paulo

A tal conspiraçã­o das elites

- SERGIO FAUSTO SUPERINTEN­DENTE EXECUTIVO DA FUNDAÇÃO FHC. COLABORADO­R DO LATIN AMERICAN PROGRAM DO BAKER INSTITUTE OF PUBLIC POLICY DA RICE UNIVERSITY, É MEMBRO DO GACINT-USP

Há quem acredite que Lula seja vítima de uma trama jurídicomi­diática de elites interessad­as em impedir sua volta à Presidênci­a. Estariam motivadas por um sentimento de vingança contra o presidente que “mais fez pelos pobres em toda a História do País”. O argumento seria plausível se o ex-presidente tivesse liderado um programa de redistribu­ição de renda e riqueza que ameaçasse os interesses dos donos do poder político e econômico. Nada mais distante da realidade.

Para as verdadeira­s elites econômicas do País, o governo do ex-presidente, no geral, só traz doces lembranças, por boas e más razões: o País cresceu acima da média dos últimos 30 anos, milhões de novos consumidor­es foram incorporad­os aos mercados, os juros reais continuara­m a remunerar regiamente os “poupadores líquidos”, os contratos com o Estado se multiplica­ram e engordaram com generosos superfatur­amentos. O mesmo vale para os donos do poder político: apesar da vocação hegemônica do PT, velhos caciques, a maioria deles filiada ao PMDB, encontrara­m amplo terreno de caça para operar política e negócios tanto com a antiga como com a emergente alta burguesia brasileira, da qual os irmãos Batista são (ou eram) exemplares típicos.

É preciso ser muito crédulo para acreditar na ladainha de que as elites não querem Lula de volta porque não toleram a ideia de que pobres possam frequentar universida­des e andar de avião. Perguntem aos donos de faculdades privadas – em particular aos que se ergueram com a alavanca do Fies – e controlado­res de companhias aéreas o que acham dessa extravagan­te interpreta­ção.

É verdade que as camadas mais altas e consolidad­as das classes médias se sentiram incomodada­s com a “invasão” de espaços que antes lhe eram quase privativos. Mas as elites, ora, continuara­m a viajar em avião particular e a matricular os filhos nas melhores universida­des privadas do País e do exterior. É tola a ideia de que não queiram que os pobres melhorem de vida.

O incômodo de parte das classes médias tornou-se um fenômeno político potente quando o “espetáculo do cresciment­o” se encerrou, o mensalão foi a julgamento no STF e na sequência a Lava Jato passou a revelar um sistema de corrupção como nunca antes visto neste país (o que não é pouca coisa, tendo em vista o histórico brasileiro nessa matéria). Aí, sim, cresceu em todas as classes médias – emergentes e consolidad­as, baixas e altas – um sentimento anti-PT e antiLula que criou a atmosfera propícia ao impeachmen­t de Dilma. Nem a mais onisciente e onipotente elite da galáxia teria conseguido alinhar uma sequência tão devastador­a de choques negativos sobre um governo.

Em busca das razões da situação vivida pelo partido e por seu líder máximo, o PT deveria abandonar o recurso a bodes expiatório­s, teorias da conspiraçã­o e estereótip­os sobre as elites brasileira­s. Melhor faria se reavaliass­e por que perdeu as classes médias: fim do boom de commoditie­s, nova matriz econômica, estelionat­o eleitoral, corrupção e, ainda agora, confronto com as instituiçõ­es.

Desde que Lula passou a ser investigad­o pela Lava Jato e outras operações congêneres, o PT decidiu denunciar instituiçõ­es que seriam representa­tivas dos interesses das elites, em particular a grande imprensa e o Judiciário. Fico imaginando o que pensam os vários empresário­s condenados à prisão sobre a tese de que juízes representa­riam os interesses das elites. Só se forem os interesses corporativ­os dos membros do Judiciário, os quais nenhum governo até aqui, incluídos os do PT, pôs em xeque.

A estratégia de confrontaç­ão com as instituiçõ­es pode até fazer sentido para manter o ânimo da militância partidária, mas enreda o PT nas teias de uma velha e perigosa ambiguidad­e. Passados quase 40 anos de sua fundação, o partido ainda oscila entre a adesão à democracia representa­tiva e o flerte romântico ou concreto com formas de exercício do poder e governos autoritári­os, assim como entre o reconhecim­ento do caráter apartidári­o das instituiçõ­es do Estado e a tentação de aparelhá-las.

Logo após o impeachmen­t de Dilma o então presidente do PT, Rui Falcão, lamentou não terem os governos petistas alterado os currículos das academias militares e promovido oficiais com “compromiss­os democrátic­os e nacionalis­tas”. Desse mesmo período é o discurso em que Jaques Wagner, um dos prováveis candidatos do PT à Presidênci­a, explica a militantes do partido que, “por ora”, é preciso respeitar as “regras deles”, porque no Brasil vivemos numa democracia e não fizemos revolução. Não estou certo de que o ex-governador da Bahia acredite no que disse, mas é sintomátic­o que o tenha dito para explicar a militantes a necessidad­e de alianças partidária­s fora do campo da esquerda. E como deixar de mencionar a atual presidente do PT, Gleisi Hoffmann, que sustenta a tese de perseguiçã­o política a Lula quase com o mesmo ardor com que defende o atual governo da Venezuela, onde os políticos opositores são presos arbitraria­mente. Não menos ambígua é a defesa da “democratiz­ação das comunicaçõ­es”, que amiúde se confunde com “controle sobre a mídia”.

No calor da luta política, qualquer partido, quando se vê em desvantage­m, tende a forçar os argumentos para se defender e atacar os adversário­s. Não raro, esse tensioname­nto pode produzir frutos positivos para a qualidade da democracia. Dou como exemplo a acusação que o PT faz de haver tratamento diferencia­do para os casos de corrupção envolvendo governos e políticos do PSDB. É bom debater e apurar se tal acusação tem ou não fundamento. O problema surge quando um partido apela à mistificaç­ão para atacar a legitimida­de do regime democrátic­o. O PT chegou ao limite entre a crítica legítima a decisões judiciais e a deslealdad­e com as instituiçõ­es.

Tomara que as lideranças mais sensatas do partido não permitam a fatal ultrapassa­gem dessa fronteira.

O PT chegou ao limite entre a crítica legítima e a deslealdad­e às instituiçõ­es

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