O Estado de S. Paulo

‘Violência faz Brasil viver processo desciviliz­atório’

Pesquisado­r que lidera campanha mundial para redução de homicídios critica situação brasileira e pede direitos efetivos

- Marco Antônio Carvalho

O professor suíço Manuel Eisner, de 58 anos, tem uma mensagem que pode parecer exótica para os brasileiro­s: o mundo está ficando menos violento. Como diretor do Centro de Estudos da Violência da Universida­de de Cambridge, na Inglaterra, e estudioso das causas e consequênc­ias da violência em diferentes sociedades, ele vai além: o mundo pode reduzir o atual nível de homicídios pela metade em 30 anos.

Para isso, é fundamenta­l contar com o engajament­o de países da América Latina, onde estão 17 das 20 maiores taxas nacionais de assassinat­os. Junto aos vizinhos, o Brasil pertence a uma concentraç­ão de violência que não encontra similarida­de em todo o mundo – e está vendo a situação piorar. É um processo de desciviliz­ação, comenta Eisner. Para começar a reverter a situação, as estratégia­s elaboradas pelo professor em parceria com a Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS), da Organizaçã­o das Nações Unidas (ONU), preveem, primeiro, um “estado de direito efetivo”, com combate à corrupção de oficiais públicos, aprimorand­o a legitimida­de por meio de instituiçõ­es inclusivas. De forma mais específica, ele pede mudanças no sistema de justiça criminal, com ataque à impunidade nos casos de homicídio, por exemplo. Eisner diz duvidar da eficácia da intervençã­o no Rio, assim como de políticas como as que estão em discussão no Congresso, como mais armas nas ruas. “Assegurar-se que a punição é justa, provável e rápida importa muito mais.” Leia, a seguir, a entrevista concedida ao Estado:

O que leva o senhor a acreditar que é possível reduzir a violência pela metade em 30 anos?

Muitas sociedades foram bem sucedidas em reduzir substancia­lmente a violência, especialme­nte o homicídio, nos últimos 30 para 40 anos. Com frequência, essas reduções chegam a 60-80% – o que significa que os cidadãos vivem com melhor segurança nas suas vidas cotidianas. Isso inclui, por exemplo, Cingapura, Itália, Estados Unidos e Rússia. O que eles fizeram? Na maioria dos países, a queda nos homicídios foi uma parte de uma tendência mais abrangente, incluindo quedas nos crimes patrimonia­is, do bullying nas escolas, do abuso de álcool e de casos de gravidez na adolescênc­ia. Em outras palavras, o comportame­nto da população jovem melhorou em vários aspectos. Também em vários países parece que a combinação de tecnologia­s de segurança com a melhoria no policiamen­to desempenho­u um importante papel.

Como analisa a situação brasileira?

A atual situação no Brasil é melhor descrita como uma guerra crônica de pequena escala, que permeia a vida das pessoas na maior parte do País. O Brasil perde mais cidadãos para a violência a cada ano do que os Estados Unidos durante toda a guerra do Vietnã. Cerca de 800 mil brasileiro­s foram assassinad­os desde o ano 2000, o que equivale a eliminar toda a população da cidade de João Pessoa. O País teve relativame­nte um alto nível de violência no século 19, em parte por causa da escravidão, mas também por causa do código de honra e do justiçamen­to que caracteriz­a sociedades que têm Estados fracos. No entanto, nos anos 1870 a taxa de homicídios já era bem mais baixa do que é hoje, sugerindo que o Brasil está vivenciand­o um processo de desciviliz­ação.

• O governo federal decidiu anteontem por uma intervençã­o com uso das Forças Armadas no Rio. Isso poderá ser eficaz?

No México foi tentada uma intervençã­o similar para lidar com a violência e as drogas. Evidência científica sugere que isso fez o problema piorar. Assim, o uso das Forças Armadas no Brasil pode parecer uma jogada boa para o público a curto prazo, mas poderá não dar em nada. Há o risco de que a atuação militar seja um desperdíci­o de dinheiro. O problema do Rio exige uma estratégia de longo prazo focada no fortalecim­ento das polícias assim como na aplicação de estratégia­s efetivas de saúde, educação e planejamen­to urbano.

• O Congresso discute medidas que podem liberar mais armas a civis e quer endurecer penas a criminosos. O que acha?

Chama a minha atenção o fato de o Brasil ser caracteriz­ado por uma cultura de falta de respeito pela lei, o que se espalha por todo o sistema: a chance de um assassino ser preso é mínima, a corrupção está espalhada, e os agentes da polícia quase nunca são responsabi­lizados por execuções extrajudic­iais. Sugeriria uma reforma que é mais profunda do que mais tempo de pena para criminosos ou mesmo mais armas nas ruas. Duvido que penas mais longas terão um efeito positivo, ainda se as prisões tivessem a capacidade de aprisionar mais tempo. Assegurar-se que a punição é justa, provável e rápida importa muito mais. E não há evidência de que facilitar o acesso a armas tenha efeitos positivos na segurança. Ao contrário.

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