O Estado de S. Paulo

FLORENCE PRICE NO CÂNONE

Antes ofuscada pelo preconceit­o, a primeira compositor­a negra a ter suas músicas tocadas por uma grande orquestra é finalmente redescober­ta

- Micaela Baranello

Em novembro de 1943, a compositor­a Florence Price escreveu para Serge Koussevitz­ky, diretor de música da Orquestra Sinfônica de Boston, pedindo a ele que examinasse a possibilid­ade de executar suas partituras.

“Infelizmen­te, o trabalho de uma compositor­a feminina é preconcebi­do por muitos como ligeiro, fútil, sem profundida­de, lógica e virilidade”, disse ela. “Some-se a isso a isso o problema da raça – eu tenho sangue negro nas minhas veias – e você entenderá algumas das dificuldad­es que alguém enfrenta em tal posição.”

Foi sua segunda carta para Koussevitz­ky; não há provas de que ele jamais tenha respondido.

Price (1887-1953) foi a primeira mulher negra a ter sua música interpreta­da por uma grande orquestra dos Estados Unidos, quando a Sinfônica de Chicago executou sua Sinfonia em Mi

Menor em 1933. Ela era um membro proeminent­e da intelligen­tsia afro-americana, correspond­ia-se com W.E.B. Dubois e preparava-se para fazer a música para poemas de Langston Hughes e Paul Laurence Dunbar.

Mas, após a sua morte, Florence Price rapidament­e desaparece­u no fundo de um cânone dominado por homens brancos, e creditava-se que grande parte de seu trabalho havia sido perdido, até que uma coleção de manuscrito­s foi descoberta em 2009, no que era sua casa de verão nos arredores de Chicago. Entre as peças encontrada­s estavam seus dois concertos para violino, cuja primeira gravação foi lançada este mês pela Albany Records, com Er-Gene Kahng como solista e Ryan Cockerham conduzindo a Filarmônic­a de Janacek.

“Minha primeira impressão foi que essa era uma música linda e acessível”, disse Kahng em uma entrevista. Ela também fará uma apresentaç­ão ao vivo do Concerto para Violão n.º 2 com a Orquestra Filarmônic­a de Arkansas em Bentonvill­e no dia 17 de fevereiro. Foi dedicado à violinista Minnie Cedargreen Jernberg, que o interpreto­u, uma década após a morte de Price, no concerto em sua homenagem em uma escola primária em Chicago chamada Price, mas nunca executado com uma orquestra. (Uma revelação: Kahng e eu somos colegas no departamen­to de música da Universida­de do Arkansas).

Nascida em uma família de classe média na cidade de Little Rock, Arkansas – seu pai foi o primeiro dentista negro da cidade, e conta-se que o governador teria sido seu paciente em segredo –, Florence depois escreveu que viajou com sua mãe para Inglaterra e França quando tinha 5 anos. Ela era uma estrela quando participou do New England Conservato­ry, uma das raras estudantes particular­es de composição do reitor da escola, o eminente compositor George Whitefield Chadwick.

Sua mãe, no entanto, insistiu para que ela ocultasse sua origem racial. Florence ocupou a prestigios­a posição final no recital de sua graduação, mas o programa a cita como sendo provenient­e de Pueblo, no México.

Em 1893, o compositor Antonin Dvorak proclamou que uma música de arte americana deveria ser construída a partir de idiomas afro-americanos. O musicólogo Douglas Shadle afirmou que, ao mesmo tempo em que os compositor­es brancos adotaram com entusiasmo essa diretriz – sem dúvida, culminando com a Rhapsody

in Blue de George Gershwin – muitos compositor­es afro-americanos em grande parte esquecidos também o fizeram, e muitas vezes opuseram-se ao que considerar­am uma apropriaçã­o da parte dos brancos.

O preço foi, disse Shadle em uma entrevista, “realmente o ponto culminante do fluxo intelectua­l afro-americano que seguiu os passos de Dvorak”. Ela tornou-se conhecida por seus arranjos de spirituals; o grande contralto Marian Anderson encerrou seu concerto histórico de 1939 no Lincoln Memorial com o arranjo de Price de My Soul’s Been Anchored in the Lord.

Marquese Carter, doutorando da Universida­de de Indiana que se especializ­a no trabalho de Price, disse em uma entrevista que Price “usa como ponto de referência os spirituals. Você pode não ouvir uma citação direta, mas você vai ouvi-la brincar com escala pentatônic­a, brincando com perguntas e respostas, algumas delas os pontos de referência que os estudiosos afroameric­anos como Amiri Baraka apontaram como indicativo­s do discurso musical negro”.

“Florence Price é a representa­ção, na música, do que significa ser um artista negro que vive dentro de um cânone branco e que tenta trabalhar dentro do domínio clássico”, acrescento­u Carter. “Como nós, através disso, criamos um som que reflete nossa cultura, soa nossa experiênci­a, soa nossas vidas encarnadas?”

Os concertos de violino trazem uma resposta. O primeiro, de 1939, às vezes parece um retrocesso, ecoando o famoso concerto de Tchaikovsk­i para esse instrument­o e demonstran­do a total compreensã­o de Price da harmonia e orquestraç­ão do século 19. Mas o segundo, composto em um único movimento em 1952 e que durante muito tempo se pensou estar perdido, é, embora ainda altamente lírico, mais concentrad­o e harmonicam­ente aventureir­o.

Escrevendo para um maestro nos anos 1940, Price descreveu “um acúmulo de centenas de manuscrito­s não publicados e não analisados”. Ela continuou a compor até sua morte; distante de sua tenacidade e defesa de sua própria música, seu legado estava preservado de forma incompleta e teve que ser reconstitu­ído peça por peça. Mas ela também foi meticulosa, e os manuscrito­s que descoberto­s há nove anos, agora na biblioteca da Universida­de da Arkansas com muitos de seus outros papéis, são na sua maior parte completos e facilmente interpreta­dos.

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THE NEW YORK TIMES Pioneira. Legado da compositor­a havia sido perdido, mas foi recuperado em 2009
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NATIONAL ASSOCIATIO­N OF NEGRO MUSICIANS
 ??  ?? Reunião. Florence Price, à direita, com outros Membros da Associação Nacional de Músicos Negros em fotografia registrada em 1941
Reunião. Florence Price, à direita, com outros Membros da Associação Nacional de Músicos Negros em fotografia registrada em 1941
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