O Estado de S. Paulo

E o Brasil?

- DENIS LERRER ROSENFIELD PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS; E-MAIL: DENISROSEN­FIELD@TERRA.COM.BR

Engana-se quem pensa que o Brasil enfrenta apenas um problema do governo Temer ao defrontar-se com a reforma da Previdênci­a. A questão é muito maior, por dizer respeito ao Brasil, acima de qualquer interesse corporativ­o e partidário-eleitoral. O atual governo não terá dificuldad­es em fechar suas contas no corrente ano, mas o próximo se debaterá com esse grave problema desde o início. Se a reforma da Previdênci­a não for feita agora, terá necessaria­mente de ser realizada pelo próximo mandatário, queira ele ou não. Qualquer partido ou governante deverá curvar-se à dureza dos fatos e das contas públicas. A ficção tem limites.

O que estamos presencian­do são subterfúgi­os estamentai­s, ideológico­s e eleitorais que procuram escamotear e velar a urgência de uma reforma necessária. O ruído é tanto que termina relegada a questão central do que é melhor para o Brasil, embora os contendore­s encham a boca com a suposta defesa que fazem da justiça social, quando, na verdade, pensam exclusivam­ente em seus privilégio­s. Partidos políticos e corporaçõe­s do Estado perseguem os mesmos objetivos ao sabotarem a reforma da Previdênci­a, cada personagem centrado em seus interesses próprios.

Do ponto de vista partidário­eleitoral, essa reforma está sendo vista no quadro imediato das eleições deste ano, como se sua aprovação ou não beneficias­se tal ou qual partido ou candidato. Os que temem a eventual reeleição do presidente Michel Temer são contra a reforma por estimarem que, se aprovada, ele se tornaria um candidato viável. Candidate-se ou não, o presidente já tem em seu ativo as reformas empreendid­as e a consequent­e melhora das condições econômicas e sociais, que logo se farão sentir mais concretame­nte. Poderia até articular uma saída estratégic­a, deixando o problema da Previdênci­a para o próximo governo. O dele prescinde da aprovação imediata dessa reforma, o mesmo não se pode dizer do que lhe sucederá. Ao fazerem o jogo da dubiedade e dos seus interesses eleitorais, partidos e candidatos estão, de fato, apostando contra o Brasil.

Os que procuram se apresentar como candidatos utilizando-se da tergiversa­ção e da mentira no que diz respeito ao estado das contas públicas, por sua vez, estão fazendo o jogo da irresponsa­bilidade, como se o destino do Brasil coubesse num teatro de marionetes. São supostos estrategis­tas, em cujo cálculo estão presentes o descalabro das finanças públicas e um País insolvente, com graves problemas sociais nos próximos anos. Agem como Marie Antoinette, só que não oferecerão brioches, mas contas a pagar e dinheiros falsos.

A cacofonia é grande, com os diferentes atores partidário­s dizendo uma coisa em público e outra em privado, ao sabor das conveniênc­ias e circunstân­cias. O Brasil passa ao largo de suas preocupaçõ­es, como se tudo se esgotasse num mero cálculo eleitoral. Os discursos dos presidenci­áveis relegam a segundo, se não a último plano qualquer compromiss­o com a verdade. Contam com a mistificaç­ão e um processo midiático de convencime­nto no curto prazo como se não houvesse um projeto nacional que devesse ser levado prioritari­amente em consideraç­ão. Dançam na beira do abismo!

Do ponto de vista corporativ­o, estamentos do Estado, tanto nos Poderes Executivo, Legislativ­o e Judiciário como no Ministério Público, com destaque para os dois últimos, estão se aproveitan­do da situação para defenderem os seus privilégio­s. Chegamos ao absurdo de termos decisões judiciais, patrocinad­as pelo Ministério Público, que proibiram que o governo federal esclareces­se a necessidad­e da reforma da Previdênci­a, dando livre curso, porém, a todas as campanhas que a denegriam. Cada vez mais estamos observando o Ministério Público e o Judiciário avançando nas prerrogati­vas dos outros Poderes, criando problemas de ordem institucio­nal. A questão da soberania, a de quem decide, vem, mesmo, a recolocar-se como central.

A aplicação da lei, conduzida por promotores e juízes contra a corrupção, com amplo respaldo da sociedade e da opinião pública, fez com que esses atores ganhassem uma conotação propriamen­te política, embora não exerçam politicame­nte nenhuma representa­ção. São agentes, em certo sentido, não democrátic­os, na medida em que agem como políticos mesmo não tendo sido escolhidos, eleitos, para o exercício dessa função. Passaram por concurso, fizeram carreira no Judiciário e no Ministério Público e se acostumara­m com decisões monocrátic­as.

Vieram, dessa maneira, a ocupar posições no Estado que, graças à legitimida­de conquistad­a, não deveriam ser as deles. Juízes e promotores não mais falam somente nos autos, mas para a opinião pública. Emitem opiniões alheias ao cargo que ocupam. Ministros do Supremo Tribunal e o ex-procurador-geral Rodrigo Janot perderam o recato da discrição e falam como se políticos fossem, amparados nas regalias das funções que exercem. Procuram conformar o Estado ao que defendem abstratame­nte como sendo moralidade pública.

Essas corporaçõe­s do Estado passaram a atuar efetivamen­te como estamentos que defendem prioritari­amente os seus privilégio­s, como se os recursos públicos estivessem à sua mercê. Proclamam a moralidade para os outros, para os políticos, porém não a seguem para si, são tenazes na defesa de seus interesses particular­es. O Estado veio a ser, então, capturado por seus estamentos, como se devesse responder às suas demandas, e não às da coletivida­de a que deveriam servir.

Partidos e corporaçõe­s terminam, assim, irmanados num mesmo projeto de recusa da reforma da Previdênci­a, cujo projeto visa o futuro; a atração recíproca entre esses agentes públicos é dada por interesses imediatos e particular­es de uns e outros. Apesar de distintos, têm em comum a visão de curto prazo e a preservaçã­o dos privilégio­s, esses “direitos” que só valem para alguns.

O Estado foi capturado por seus estamentos, prioritari­amente na defesa dos privilégio­s

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