O Estado de S. Paulo

A moleza pode acabar

- LUÍS EDUARDO ASSIS

Ainflação de janeiro nos Estados Unidos acendeu uma luz amarela no painel de controle da economia brasileira – assumindo que temos algo parecido. Os preços ao consumidor aumentaram 0,5% no mês passado, acima das expectativ­as dos analistas. Parece pouco, mas pode ser a senha para o fim de um longo período em que juros muito baixos foram a regra nas principais economias do mundo.

Os juros pagos por títulos americanos com prazo de 10 anos estão muito abaixo do padrão histórico. Na década terminada em 1997, estes papéis pagaram 7,31% ao ano. Na década seguinte, a remuneraçã­o média anual recuou para 4,83%. Nos dez anos até 2017, a taxa ficou ainda menor: 2,57%. Hoje aponta para 3%. Nas taxas básicas pagas em operações de curto prazo, o patamar é irrisório. Depois de terem alcançado 5% em 2007, na média diária, foram derrubadas para 0,25% em 2009, no rastro da crise de 2008, onde permanecer­am seis anos consecutiv­os. No ano passado, após elevações homeopátic­as, ficaram em 1,13%. O que ocorreu nos Estados Unidos foi replicado, em maior ou menor grau, em todos os países ricos.

Há várias razões para que os juros internacio­nais sejam tão baixos. Aumento na poupança financeira é uma delas. Isto ocorreu por uma alteração demográfic­a nas economias desenvolvi­das e também pelo rápido cresciment­o da China, cujo gigantesco superávit em transações correntes precisa ser reciclado de alguma forma. Também é fato que o volume de investimen­tos nos países desenvolvi­dos requer hoje menos recursos, dado que parcela crescente do capital é composta por ativos “intangívei­s” (a este respeito, vale a leitura do livro de Jonathan Haskel, Capitalism without Capital).

Os bancos centrais também atuaram no sentido de derrubar os juros. Não só mantiveram as taxas básicas perto de zero, como assumiram a prática pouco ortodoxa de comprar títulos públicos e privados. Desde 2009 estas aquisições somaram nada menos que US$ 11 trilhões, algo como seis vezes o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. Este dinheiro brota do chão e torna os mercados internacio­nais muito mais propensos a aceitarem riscos, favorecend­o enormement­e a vida dos países emergentes.

Em junho do ano passado, a Argentina, que já deu seis calotes na sua dívida externa, conseguiu colocar um papel com prazo de 100 anos. Para uma emissão de US$ 2,75 bilhões, a demanda alcançou US$ 9,75 bilhões. Não se trata de confiança ou de credibilid­ade. É apenas falta de opção. O papel argentino pagou na largada mais de 7% ao ano, ao passo que um título do Tesouro alemão de 30 anos, bem mais curto, rendia na época pouco mais de 1% ao ano.

A complacênc­ia dos investidor­es internacio­nais também nos favorece – e muito. Em dezembro de 2015, a relação Dívida Pública/PIB no Brasil, tradiciona­l indicador de solvência, estava em 65%, ao passo que o Embi (que indica os juros adicionais que temos de pagar para

O equacionam­ento da crise fiscal é mais urgente do que nunca. A paciência do resto do mundo está acabando

colocar papéis no mercado) era de 533 pontos. No final de 2017, a dívida já alcançava 74% do PIB, sinalizand­o clara deterioraç­ão das condições fiscais, mas o risco Brasil tinha caído para 241 pontos.

A tolerância generosa dos mercados internacio­nais tende a se restringir à medida que sobem os juros internacio­nais. Com a perspectiv­a de cresciment­o mais rápido da Europa e dos Estados Unidos esta elevação é inevitável. Não será abrupta a ponto de provocar uma ruptura no padrão de financiame­nto, mas tudo sugere que os melhores tempos já se foram. O equacionam­ento da crise fiscal é mais urgente do que nunca. A paciência do resto do mundo com nossa protelação está acabando.

ECONOMISTA. FOI DIRETOR DE POLÍTICA MONETÁRIA DO BANCO CENTRAL E PROFESSOR DA PUC-SP E FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS-SP; E-MAIL: LUISEDUARD­OASSIS@GMAIL.COM

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