O Estado de S. Paulo

Miséria polêmica

IMS do Rio abre mostra amanhã com 30 fotos de Gordon Parks e Henri Ballot que confrontam a pobreza aqui e nos EUA

- Antonio Gonçales Filho

O fotógrafo, poeta, cineasta e compositor norte-americano Gordon Parks (1912-2006) talvez seja mais lembrado por ter dirigido Shaft (1971), filme de ação que passou à história por ser um dos primeiros a eleger como protagonis­ta um detetive negro. No entanto, sua carreira como fotógrafo não teve nada de blaxpoitat­ion. Não era o negro o tema central de suas imagens, mas a miséria. Parks conhecia ambas as condições na pele – ele nasceu na zona rural do Kansas, filho mais novo de uma família de 16 irmãos. Como repórter da revista Life, dez anos antes de Shaft, ele esteve no Rio e realizou uma das mais tocantes reportagen­s publicadas pela revista norte-americana, em 1961. Ela está associada a outra reportagem semelhante, feita em resposta à matéria de Parks pelo fotógrafo franco-brasileiro Henri Ballot (19211997), uma encomenda da revista O Cruzeiro.

Ambas as séries integram a exposição O Caso Flávio, que o Instituto Moreira Salles (IMS) do Rio de Janeiro abre nesta terça, 20, em sua sede na Gávea, com curadoria de Sergio Burgi, coordenado­r de fotografia do IMS, Amanda Maddox, do J. Paul Getty Museum de Los Angeles e Paul Roth, do Ryerson Image Centre de Toronto, instituiçõ­es que organizara­m a mostra com a Gordon Parks Foundation de Nova York. A mostra reúne 30 imagens dos dois fotógrafos e fac-símiles das duas reportagen­s, hoje estudadas em escolas de jornalismo tanto dos EUA como do Brasil.

O nome da exposição referese ao garoto que Gordon Parks, então com 49 anos, encontrou na favela da Catacumba, na zona sul carioca, em 1961, Flávio da Silva, na época com 12 anos, raquítico, asmático e com suspeita de tuberculos­e. Ao abrir a porta do barraco, Parks, encarregad­o pela Life de retratar a pobreza na América Latina, começando pelo Brasil, encontrou Flávio, visto por ele carregando uma lata d’água na cabeça, cuidando dos sete irmãos menores – o que significav­a, entre outras obrigações, cozinhar e dar banho em todos com a água que sobrava do arroz, enquanto os pais trabalhava­m.

Parks já retratara antes a pobreza no Harlem, em Nova York, e em Porto Rico, mas o que viu na Catacumba era pior. Flávio, segundo o médico do posto de saúde carioca, não chegaria vivo a 1962, consideran­do seu debilitado estado. Parks voltou a Nova York, a Life publicou uma ampla reportagem e promoveu uma campanha para arrecadar fundos destinados ao garoto, possibilit­ando à família de Flávio a compra de uma casa de alvenaria no bairro de Guadalupe. O próprio presidente Kennedy tomou providênci­as para que o menino viajasse para os EUA e fosse levado a um hospital infantil do Colorado. Recuperado, Flávio voltou ao Rio dois anos depois.

A campanha Aliança para o Progresso de Kennedy tinha, claro, algo a ver com iniciativa­s desse tipo, que tinham como objetivo impedir o avanço do comunismo abaixo do Equador. A revista O Cruzeiro, por considerar a reportagem da Life uma afronta, resolveu dar uma resposta à altura. Enviou o repórter fotográfic­o franco-brasileiro Henri Ballot a Nova York, publicando nas páginas da então maior revista brasileira (circulação de 700 mil exemplares) sua visão do Lower East Side de Manhattan (Harlem e imediações da rua Bowery). Dez crianças da família Gonzalez, de origem porto-riquenha, ocupam as páginas de O Cruzeiro em cenas dantescas – a revista estampou com destaque a foto do menino Ely Samuel Gonzales com o corpo coberto de baratas (a revista

Time entrou na briga, na época, denunciand­o que os insetos foram levados pelo próprio fotógrafo para dramatizar ainda mais a situação).

A manchete da revista O Cruzeiro (“Novo Recorde Americano: Miséria”) era mais agressiva que a da revista Life (“O Terrível Inimigo da Liberdade: A Pobreza”), mas nenhum leitor brasileiro se mobilizou para ajudar as crianças porto-riquenhas, ao contrário dos americanos. Ballot revisitou a favela da Catacumba em busca de possíveis pistas que identifica­ssem adulteraçõ­es nos registros fotográfic­os de Parks – entre elas o possível pagamento a um favelado para representa­r o papel de um morto numa foto. Dificilmen­te alguém que viu seu filme The

Learning Tree, a comovente autobiogra­fia de Parks, diria que ele fosse capaz de falsificar o que quer que fosse. Fotografar, como ele dizia, era usar uma arma: contra a miséria humana.

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GORDON PARKS/IMS
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HENRI BALLOT/IMS Em Nova York. Henri Ballot registrou a vida de uma família porto-riquenha
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GORDON PARKS/IMS No Rio. Flávio e seus irmãos, moradores na favela da Catacumba, fotografad­os por Gordon Parks (1961)
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HENRI BALLOT/IMS Resposta. Garoto do lado pobre de Manhattan fotografad­o por Ballot para confrontar Parks

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