Ideias perigosas
O desejo de acabar com o crime no Rio não pode atropelar direitos e garantias dos cidadãos.
Ocaráter improvisado da intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro permite que ideias desarrazoadas e até perigosas prosperem. Diante da legítima preocupação do Exército com a falta de segurança jurídica para atuar em zonas urbanas, algo que deveria ter sido discutido muito antes da decretação da intervenção, o Ministério da Defesa cogitou a possibilidade de requerer da Justiça mandados coletivos de busca e apreensão nas áreas em que os militares deverão atuar.
Mandados coletivos não definem qual é o domicílio a ser vasculhado – pode ser qualquer um no raio determinado pela ordem judicial. Portanto, parte-se do pressuposto de que todos os moradores daquela área são suspeitos de crimes, e só deixarão de sê-lo depois que as forças de segurança vistoriarem suas casas e constatarem que não têm armas ou drogas nem acobertam criminosos.
Não se sabe se o governo vai mesmo levar adiante tamanho despautério – ontem, já circulavam informações de que as autoridades federais estavam propensas a desistir da iniciativa. No entanto, somente o fato de que se aventou essa possibilidade a sério, com enfático apoio público do Ministério da Defesa, dá a dimensão do desatino que parece governar uma parte dos envolvidos na gravíssima decisão de intervir na segurança pública do Rio de Janeiro.
Medidas de claro recorte autoritário como essa podem até ganhar a simpatia de uma parte considerável dos moradores do Rio de Janeiro, desejosos de que haja firmeza, rapidez e eficiência no combate à criminalidade que assola o Estado. No entanto, o desejo de acabar com o crime não pode atropelar os direitos e garantias dos cidadãos – a não ser que se esteja a falar de estado de defesa ou de estado de sítio, quando alguns desses direitos são parcialmente suspensos, o que obviamente não é o caso do Rio de Janeiro. O combate à criminalidade jamais será bem-sucedido se estiver assentado na violação da lei.
Não é assim, contudo, que pensam algumas das autoridades. Para o ministro da Defesa, Raul Jungmann, por exemplo, “os mandados coletivos de busca e apreensão são essenciais” e tal instrumento “já foi empregado outras vezes no Rio de Janeiro”. De fato, a Justiça já expediu mandados desse tipo em algumas operações policiais no Rio, como em 2014, para buscas em favelas do Complexo da Maré, e, em 2002, para prender o traficante Elias Maluco no Complexo do Alemão. Nem é preciso dizer que dois erros não fazem um acerto. Se as autoridades executivas e judiciárias colaboraram no passado para violar garantias constitucionais em nome da segurança pública, isso não torna legítimo que se volte a fazer o mesmo agora.
Um exame rápido da questão deveria bastar para que o bom senso prevalecesse e a ideia fosse imediatamente abandonada, por sua cristalina inconstitucionalidade. Um mandado de busca e apreensão deve determinar nominalmente o sujeito a quem se dirige e as suspeitas que lhe serviram de motivação. Ora, se assim não fosse, a garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio estaria arruinada, pois as autoridades policiais poderiam entrar em qualquer residência na área estabelecida pelo mandado.
Compreende-se a preocupação das Forças Armadas com as implicações legais, para seus homens, do envolvimento em operações contra criminosos nas favelas cariocas. Mas esse problema não se resolverá sacrificando-se a lei, permitindo que se invadam casas aleatoriamente ou até mesmo que soldados tenham licença para matar suspeitos.
O fato é que o emprego de militares em missões de segurança pública e combate à criminalidade já se comprovou inócuo justamente, entre outras razões, porque essa força não pode ter caráter policial, salvo em caso de esgotamento dos instrumentos destinados à preservação da ordem pública. Se esse é o caso do Rio de Janeiro, trata-se de questão controvertida. A única certeza que se tem em todo esse imbróglio é que a essência do problema fluminense – o colapso do Estado, carcomido pela corrupção – permanecerá intocada.