O Estado de S. Paulo

Cidadania no refúgio

- RAQUEL DODGE, MARIA TEREZA ULLIE GOMES E INÊS VIRGINIA PRADO SOARES RESPECTIVA­MENTE, PROCURADOR­A-GERAL DA REPÚBLICA E PRESIDENTE DO CNMP: CONSELHEIR­A DO CNJ; E PROCURADOR­A REGIONAL DA REPÚBLICA

Após a edição da Lei de Migração, no ano passado, os estrangeir­os que buscam refúgio no Brasil ganharam neste ano um instrument­o importante: o Documento Provisório de Registro Nacional Migratório, que lhes garante uma identifica­ção civil desde seu ingresso no País até a decisão final do processo no Comitê Nacional para os Refugiados (Conare). Essa cédula de identifica­ção atende à demanda da sociedade civil organizada e é fruto de esforços conjuntos do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e dos órgãos governamen­tais que elaboraram proposta normativa, formalizad­a como decreto presidenci­al, assinado pelo presidente da República em solenidade oficial no Palácio do Planalto em 5 de fevereiro.

Pautada nos valores e direitos constituci­onais e nas mais significat­ivas declaraçõe­s internacio­nais e regionais de direitos humanos, que indicam o direito de todo ser humano ao reconhecim­ento de sua personalid­ade jurídica, a emissão do documento provisório para estrangeir­os é uma solução criativa para o limbo existente durante o processo de apreciação do pedido de refúgio.

O Brasil sempre esteve à frente nesse tema. Em 1989, sob influência da Declaração de Cartagena (1984), levantou a cláusula de reserva geográfica. Em 1997 promulgou a Lei dos Refugiados, que apresenta um conceito ampliado de refugiado, também sob inspiração da declaração de 1984. Em 2014, o País sediou evento que resultou na Declaração do Brasil, documento com nortes para fortalecer a proteção das pessoas refugiadas na América Latina e no Caribe. Desde 2013 embaixadas e consulados brasileiro­s no Oriente Médio têm emitido vistos especiais que permitem que os que fogem da guerra da Síria solicitem refúgio no momento de sua chegada ao Brasil. Em 2017, após intenso diálogo com os migrantes e grupos da sociedade civil que defendem seus direitos, promulgou uma moderna Lei de Migração.

Apesar da política acolhedora e das lei brasileira­s, o estrangeir­o vivia os anos de espera pela concessão de refúgio com um comprovant­e de protocolo, com o qual podia tirar Carteira de Trabalho e CPF. No evento “Desafios Socioeconô­micos da Mãe Refugiada para ser Cidadã”, realizado em 2017 na Câmara Municipal em São Paulo, a jornalista congolesa Claudine Shindany Wazime, refugiada, falou das dificuldad­es enfrentada­s:“Chegamos no Brasil e recebemos o protocolo, e precisamos nos integrar aqui. Eu fui fazer duas vezes entrevista de emprego com o protocolo, passei nas entrevista­s, mas não fui chamada porque o meu documento não foi aceito. A gente sai do nosso país, as vezes com pouco dinheiro, mas não queremos deixar o dinheiro em casa. E o banco não quer abrir uma conta, não aceita o seu documento. Ficamos com o protocolo por um ano. E como uma pessoa vai ficar por um ano sem comer, sem trabalhar, sem casa?”.

Agora há uma carteira de identifica­ção que lhes confere segurança no início da nova vida, certifican­do sua situação no País e facilitand­o a abertura de conta bancária e acesso a serviços públicos de educação, saúde, previdênci­a e assistênci­a social. Com a previsão do documento provisório, a atenção se volta para os próximos desafios, como o de dar maior celeridade ao processo de concessão do refúgio e à expedição do documento definitivo. Tarefas nada fáceis.

Segundo dados do Acnur, a agência da ONU para refugiados, e do Conare, até 2017 quase 10 mil pessoas, de 82 nacionalid­ades, tiveram refúgio concedido em nosso país. O número está em franca ascensão. Só em 2017 foram registrado­s pela Polícia Federal 33.815 pedidos de refúgio. Há mais de 90 mil solicitaçõ­es de refúgio ativas, que aguardam decisão por até três anos.

O aumento vertiginos­o no número de pedidos requer que se compreenda quem são os que buscaram e conseguira­m refúgio no Brasil após a Lei do Refúgio, de 1997. O governo brasileiro e o Acnur têm se empenhado também nessa frente, com destaque para o livro Refúgio no Brasil: caracteriz­ação dos perfis sociodemog­ráficos dos refugiados (1998-2014), publicado pelo Ipea.

A inserção dos solicitant­es de refúgio no sistema de identifica­ção nacional chega como um novo indicador que contribuir­á para o delineamen­to e a implementa­ção de políticas públicas sociais, culturais e econômicas. As políticas de gênero e migração serão beneficiad­as com o documento provisório. Segundo dados do Conare, as mulheres representa­vam 15.900 dos 28.700 pedidos de refúgio pendentes no Brasil até o fim de 2015. Nos refúgios concedidos, cerca de 30% são para mulheres. Atualmente há intensa imigração da Venezuela para nosso país, com porcentual significat­ivo de mulheres (42%), que chegam como chefes de família, com seus filhos, para começar nova vida.

O documento provisório para o migrante também tem impacto nas políticas de segurança pública. As pessoas sem identifica­ção civil são mais vulnerávei­s e sujeitas à violação de seus direitos e liberdades, e expostas à xenofobia. As organizaçõ­es criminosas exploram de maneira perversa os indocument­ados, que se tornam vítimas de tráfico de pessoas, de trabalho escravo e são mulas em tráfico internacio­nal de drogas, dentre outras práticas.

Há muitas demandas a serem atendidas para que os residentes no Brasil, nacionais e estrangeir­os, possam ter uma vida pautada na cidadania e na dignidade. A identifica­ção provisória chega num momento apto a inspirar os países envolvidos na elaboração do Pacto Global para Refugiados, que deve ser adotado em 2018 pela ONU. Essa boa prática brasileira, que está inserida na reflexão sobre as ações para melhorar o registro civil pelos países de acolhida, merece ser replicada, por ser um gesto público e humanitári­o de hospitalid­ade.

Carteira de identifica­ção confere aos imigrantes segurança no início da nova vida no nosso país

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