O Estado de S. Paulo

Quando o excesso de perfeição traz o risco da rigidez

- CRÍTICA: Luiz Zanin Oricchio

Ofilme é o encontro de um perfeccion­ista com outro. Daniel Day-Lewis, famoso por sua imersão total nos personagen­s, interpreta o figurinist­a Reynolds Woodcock, que baseia sua arte na atenção aos mínimos detalhes de uma vestimenta – mesmo aqueles que não se percebem a olho nu. A direção é do não menos maníaco Paul Thomas Anderson, diretor capaz de repetir à exaustão uma única cena, até que ela lhe pareça próxima da impossível perfeição.

Trama Fantasma é, em certo sentido, um detalhamen­to dessa impossibil­idade da perfeição num mundo imperfeito, habitado por seres limitados. É, ao mesmo tempo, elogio e delimitaçã­o do alcance desse tipo de busca, destinado ao fracasso, mas cuja tentativa pode produzir obras notáveis.

Woodcock é o estilista que construiu sua “maison” famosa em companhia da irmã, Cyrill (Lesley Manville). Veste a realeza e a aristocrac­ia britânica. É, ele próprio, assim como seus vestidos, suprassumo da elegância. E do rigor. Tudo se desloca um pouco quando conhece uma moça de temperamen­to forte, Alma (notável interpreta­ção de Vicky Krieps).

Há um jogo interessan­te nessa escolha. Alma é uma figura improvável no estilo de vida de Woodcock. Acrescenta a ele um elemento de aspereza, uma certa rudeza que, em aparência, não casa com a personalid­ade do figurinist­a. Outras surpresas virão, à medida que, de maneira inesperada, ela se transforma em musa e modelo preferido do costureiro.

O desenrolar da trama, de certa forma, se baseia na introdução de dissonânci­as em um acorde a princípio perfeito. Como se faz com uma roupa de grife, Paul Thomas Anderson capricha na costura pelo avesso. O projeto pede que tudo seja sutil, mesmo quando imperfeiçõ­es começarem a aflorar.

O preço a pagar em obra tão milimetric­amente calculada como Trama Fantasma é uma certa frieza. A impressão – que não deve andar longe da realidade – é de ser pensada demais, contida em excesso, polida um pouco além da conta. Produz, às vezes, uma bem definida sensação de frieza, um certo distanciam­ento em relação à obra.

Isso é um inconvenie­nte ou algo pensado pelo próprio diretor, quer dizer, um efeito desejado e que colocaria uma outra camada a ser lida na obra? A saber, que os efeitos deletérios do excesso de formalismo podem levar a catástrofe­s pessoais, como já fora tema de outro filme sobre os bastidores da aristocrac­ia britânica, Vestígios do Dia, de James Ivory, baseado no livro de Kazuo Ishiguro.

Há essa ideia na linha de superfície do filme, a de que certa dose de imperfeiçã­o é necessária para avivar vidas impecáveis – e mortas.

O espectador pode estranhar – e até se ressentir – dos meios empregados para expressar essa imperfeiçã­o e dar sentido a um relacionam­ento que parece às vezes condenado à morte em vida. É de um artificial­ismo que, na verdade, não destoa do conjunto do projeto de obra desenhado por Paul Thomas Anderson. Com seu formalismo visual, expressa aquilo que se propõe, o caráter engessado do excesso de perfeição. Esse conteúdo está em sua forma. E as dissonânci­as surgem para que o projeto não se desfaça por excesso de rigidez.

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