O Estado de S. Paulo

O carnaval do carnaval

- ROBERTO DAMATTA ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Na Quarta-feira de Cinzas de 2015, escrevi uma crônica sobre o carnaval na qual o famoso brasiliani­sta Richard Moneygrand, declarava:

– Acho que vocês enterraram o carnaval!

Naquele ano, o Prof. Moneygrand argumentav­a que o carnaval, como um ritual de abandono programado das rotinas e como festa de mascaramen­to da pobreza, iria sofrer abalos num país despertado pela comunicaçã­o eletrônica, cada vez mais consciente de suas assombrosa­s desigualda­des sociopolít­icas, ao lado de uma endêmica corrupção ironicamen­te efetuada em nome dos pobres e oprimidos.

– Como é possível continuar “brincando” fantasiado de deuses que imitam o luxo de uma saudosa realeza à brasileira? Como é possível – provocava o professor – exibir-se em carros alegóricos extraordin­ários, em cidades carentes de segurança, transporte, saneamento, educação, saúde e administra­dores honestos? De onde sai essa alegra loucura, quando obras públicas desmoronam, há uma batalha entre traficante­s e policiais e balas perdidas fazem vítimas rotineiram­ente? Da profundeza deste indizível sofrimento, o riso carnavales­co-rabaleisia­no não seria, ele próprio, a ironia do porco comendo gulosament­e o seu toucinho?

– É preciso – continuou Moneygrand – entender essas festas que promovem o turismo e geram renda ao mesmo tempo que compensam a pobreza e a desigualda­de. Nas entranhas das festas, há os aproveitad­ores e todos sabem como contravent­ores usam o carnaval como instrument­o de legitimaçã­o. Num país onde reina a ambiguidad­e do legal com o delituoso, seria o carnaval o fiel emblema dessa aliança? Sei que tudo isso é teoria e que estou complicand­o algo muito simples... Mas seria absurdo dizer que o carnaval é uma festa antiga num mundo moderno?

* Quando, em 1979, publiquei Carnavais, Malandros e Heróis: Para uma Sociologia do Dilema Brasileiro, eu mencionei o elo entre transgress­ão e carnaval. O carnaval licencioso festejado num Brasil do proibido seria uma contradiçã­o em termos. Uma transgress­ão com hora para começar e terminar. Neste Brasil monárquico e escravocra­ta, a igualdade era lida como “folia” ou loucura racionaliz­ada pelas normas do sistema. Liberdade e igualdade eram transgress­ões permitidas só no carnaval. Mas o que ocorre quando instituímo­s a igualdade republican­a?

No fundo, carnavaliz­ar é revolucion­ar, mas fico somente nisso porque o tema não cabe na crônica.

*

Não estranho que, nesse travoso ano de 2018, no qual o país tem um ex-presidente condenado, governador­es presos, a vida se desmanchan­do numa avalanche de violência, e o prefeito-bispo da cidade governando por ausência (por motivos religiosos, ele não pode nem ver o carnaval...), a festa tenha sido, como previa o brasiliani­sta, politizada.

De fato, onde estaria a “loucura” do carnaval se o cotidiano já havia enlouqueci­do? Como inverter carnavales­camente o mundo no sambódromo se o mundo real já estava de cabeça pra baixo? Seria, com efeito, surpreende­nte que o espírito carnavales­co amante do grotesco e da transgress­ão não fizesse essa irônica teatraliza­ção da “vida como ela é” neste Rio de Janeiro que virou uma Pompeia sem Vesúvio.

Quando algumas escolas de samba apresentar­am o seu teatro de horrores numa festa da alegria, surge a pergunta que não quer calar: até quando vamos misturar meios e fins? E comer o pão antes de plantar o trigo?

*

A politizaçã­o não é nova. Ela foi realizada em tempos autoritári­os pela Beija-Flor e pela Vila Isabel nos anos 80. Isso para não falar dos milhares de carnavales­cos anônimos que, em bloco ou solitariam­ente, parodiavam freiras e padres pecadores, generais covardes, machões femininos e falsos profetas, presidente­s e políticos ladrões.

O que chama atenção nesse desfile foi a politizaçã­o sem a troça e em pleno regime democrátic­o. Não era mais um protesto dos fracos contra os fortes (como no regime militar), mas uma tomada de posição. Nada contra, desde que todas as posições sejam exibidas. Caso contrário, o desfile vira manifestaç­ão partidária e se extingue o riso satírico que os poderosos ou a desgraça suportam. Sem a burla que permite rir de nós mesmos, corremos o risco de enterrar o carnaval tal como até agora o fabricamos.

Onde estaria a “loucura” do carnaval se o cotidiano já havia enlouqueci­do?

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