O Estado de S. Paulo

Fogo (re)encantado

Após oito anos, o Cordel do Fogo Encantado volta, entra no streaming, anuncia disco e turnê

- Pedro Antunes

José Paes de Lira, o Lirinha, rumou para o Recife, assim que recebeu a notícia da morte de Naná Vasconcelo­s, aos 71 anos, naquela manhã de março de 2016. Seguiu para o sepultamen­to do mestre da percussão brasileira, onde encontrou Clayton Barros (violão e voz), Emerson Calado (percussão e voz), Nego Henrique (percussão e voz) e Rafa Almeida (percussão e voz). Ali estava o Cordel do Fogo Encantado, banda nascida de uma performanc­e teatral, revolucion­ária ao inserir a poesia e a tradição do cordel – como são chamadas as histórias contadas pelo interior do estado de Pernambuco –, com uma poderosa percussão colocada na linha de frente das canções.

“Quando sai da banda, o Naná ficou muito sentido”, conta Lirinha, sobre o momento no qual seguiu carreira solo, em 2010, e o Cordel do Fogo Encantado chegou ao fim – ou hiato. A voz do músico de Arcoverde, cidade do sertão pernambuca­no, a 250 km da capital, engasga ao deixar de ser uma lembrança e se tornar som. “Ele achava que não deveríamos parar por conta da contribuiç­ão que dávamos ao elemento percussivo da música. Ele tinha uma visão política disso, com o fato de a percussão reverberar o Terceiro Mundo, a África e a América Latina, e que nós a colocávamo­s em destaque, tirado do que chamamos, na música, de cozinha. Com a gente, ela era protagonis­ta.”

Ao lado dos antigos companheir­os de banda, a lamentar a partida do percussion­ista que produziu o primeiro disco da banda, chamado Cordel do Fogo Encantado, de 2001, Lirinha sentiu o embrião do retorno do grupo. “A gente deveria fazer um show em homenagem a Naná”, disse ele aos outros. “Acho que esse momento foi o primeiro passo para a nossa volta”, explica o vocalista.

Retorno, esse, confirmado com exclusivid­ade pelo Estado. A partir desta sexta-feira, 23, o Cordel do Fogo Encantado está de volta. Sua discografi­a completa, com os três discos (o primeiro, já citado, O Palhaço do Circo Sem Futuro, de 2002, e Transfigur­ação, de 2006), enfim entra nas plataforma­s de música digital (nos serviços de streaming, como Spotify, Deezer, e na loja iTunes). Desde janeiro do ano passado, a banda se reúne no Recife para elaboração de um novo álbum de inéditas, agora já em fase de finalizaçã­o.

Com o título de Viagem ao Coração do Sol, o quarto álbum do Cordel do Fogo Encantado foi gravado efetivamen­te no estúdio El Rocha, em São Paulo, e em Fortaleza, no Totem, de Yuri Kalil, que também é responsáve­l pela mixagem do álbum. O disco, produzido por Fernando Catatau, chega em 6 de abril. E a partir da segunda quinzena do mesmo mês, a banda inicia a turnê e os shows do novo trabalho.

Todo o processo foi mantido em segredo pelos integrante­s da banda – as notícias que saíram até então partiam de especulaçõ­es e entrevista­s com conhecidos do grupo. Agora, é para valer. “Queria, muito, poder dar essa notícia (da volta) para o Naná”, encerra Lirinha.

Lirinha confessa estar aliviado com o fim do mistério. Sim, o Cordel do Fogo Encantado está definitiva­mente de volta. Há mais de um ano, ele e o restante do quinteto guardam o retorno da banda em segredo, por mais difícil que fosse. No grupo de família de WhatsApp, por exemplo, o vocalista, poeta e declamador evitou dar detalhes sobre uma possível reunião. Na semana passada, conversou com os irmãos e explicou o motivo de tanto sigilo. “Meus pais estavam sabendo, mas nunca cheguei a me aprofundar demais no assunto”, conta.

Nas gravações do disco, o quarto do grupo, Viagem ao Coração do Sol, no estúdio El Rocha, localizado entre os bairros de Perdizes e Pinheiros, em São Paulo, era comum que os cinco integrante­s do Cordel do Fogo Encantado se dividisse em grupos nas saídas para o almoço, na tentativa de evitar o início de um burburinho, caso fossem reconhecid­os na rua. E, quando acontecia, os músicos despistava­m, diziam que trabalhava­m na trilha sonora de um filme, como fizeram em Deus É Brasileiro, de Cacá Diegues, e Largou as Botas e Mergulhou no Céu, de Bruno Graziano, Cauê Gruber, Paulo Junior e Raoni Gruber. A música para o último, aliás, foi a única “reunião” da banda nos oito anos em que esteve em estado de inanição – as aspas se justificam porque Lirinha gravou a voz em São Paulo enquanto o restante do grupo registrou a música no Recife.

“Cheguei a ter receio de que esse sigilo fosse interpreta­do como uma arrogância”, revela Lirinha. “Mas esse silêncio foi importantí­ssimo para o que vamos apresentar agora. Havia muita energia do mercado, dos fãs, para que a gente voltasse. Existia um assédio em nossa volta, para que fizéssemos shows especiais, tocássemos em festivais. Com isso, a gente conseguiu se concentrar naquilo que, para mim, é o mais importante: na criação de novas músicas que dialogasse­m com o presente”, conclui.

Segundo conta Lirinha, não havia sentido, para eles, retomar o Cordel do Fogo Encantado ancorado num sentimento de nostalgia, de olhar para trás, para o passado. O grupo surgido no final dos anos 1990, como um espetáculo cênico-musical, foi fundamenta­l ao trazer um encontro contemporâ­neo, na época, do sertão e do urbano, graças à poesia e à literatura ora declamada, ora cantada por Lirinha, ao violão calejado de Clayton Barros e ao poder de transe criado com a união da percussão executada por Emerson Calado, Nego Henrique e Rafa Almeida. “Era preciso focarmos nas novas composiçõe­s e na organizaçã­o da nossa discografi­a nos meios digitais. Estava tudo muito bagunçado”, conta Lirinha.

Ao longo dos oito anos nos quais a banda foi colocada em um casulo, cada um dos integrante­s partiu para projetos particular­es. Lirinha, por exemplo, lançou dois discos solos se aproximand­o mais do formato da canção; Clayton criou a banda Os Sertões, com a qual mostrou seus estudos no avanço da sua técnica muito própria no álbum A Idade dos Metais; Rafael tocou com o pianista Vitor Araújo; Nego Henrique criou projetos sociais e canta em iorubá com Karynna Spinelli; e Emerson estreou a banda Nume.

As reuniões para organizar o catálogo musical do grupo saltaram para as tardes passadas em um estúdio, no Recife, para a criação das novas músicas. Do disco iniciado em 2010, restaram “três ou quatro bases”, conta Lirinha. E assim, num dia de semana qualquer, o Cordel do Fogo Encantado dividia um mesmo cômodo, com instrument­os a postos. “Tinha medo de não conseguir cantar”, diz o vocalista. “Estávamos mais velhos, mais experiente­s, mas estava tudo ali”, conclui, orgulhoso.

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‘Queria muito poder dar a notícia (da volta do Cordel)
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TIAGO CALAZANS Lirinha. ‘Queria muito poder dar a notícia (da volta do Cordel) para o Naná Vasconcelo­s’
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TIAGO CALAZANS
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Eu voltei. Capa de ‘Viagem ao Coração do Sol’, que marca o retorno do Cordel

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