O Estado de S. Paulo

Ceia no mangue

‘Senhora dos Afogados’ cria diálogo entre ícones religiosos e a paisagem de Recife

- Leandro Nunes

O que Nelson Rodrigues acharia das plateias de hoje em dia? Na estreia de sua Senhora dos Afogados, em 1954, com Nathalia Timberg e direção de Bibi Ferreira, parte do público aplaudia gritando “gênio” e o restante chamava o dramaturgo de “tarado”, nada muito diferente da reação à polêmica performanc­e de Wagner Schwartz no Museu de Arte de São Paulo, cuja investigaç­ão foi arquivada na quinta-feira, 22, à tarde.

Para o diretor Jorge Farjalla, que estreia a versão da peça mais pernambuca­na do autor, nesta sexta, 23, no Teatro Porto Seguro, Senhora dos Afogados continua sendo um desafio nos palcos. “Naquela época, não dava nem para imaginar que a peça entraria em cartaz, já que estava proibida pelo governo Vargas.”

A recusa ao texto considerad­o pelo próprio autor como “fétido e pestilento” não foi luxo da censura. Conta-se que Glauber Rocha planejou criar uma película, mas logo desistiu por considerar a obra “autoral demais”. Bibi Ferreira foi sondada para dirigir depois que a atriz Henriette Morineau recusou o convite para encenar a montagem. Na peça, a família Drummond, que se orgulhava de não cometer o pecado da infidelida­de conjugal há gerações, se dirige para um circo macabro de tragédias à beira-mar. Incluídos aí alguns assassinat­os, incestos e fratricídi­os, tão presentes nas tragédias de Shakespear­e, ou mais precisamen­te em Electra Enlutada, de Eugene O’Neil, que, por sua vez, é inspirada em obra de Eurípides. “Aqui temos Moema, a filha de Misael que deseja o pai ardentemen­te e que fará de tudo para ficar com ele”, afirma o diretor. “É claro que sua vontade nunca será consumada, já que, como nas tragédias, o desejo anda sempre ao lado da morte.”

Mas o patriarca (João Vitt) tem sangues nas mãos. Enquanto lamenta a morte da caçula Clarinha, por afogamento, na vila em que vivem, as prostituta­s do cais do porto se reúnem para relembrar o assasainat­o de uma colega, há 19 anos. Sua mulher, dona Eduarda, em um casamento triste, deixa Misael e foge com o noivo de Moema, vivido por Rafael Vitt, figura suspeita na solução do antigo crime. Aos poucos, mais delitos serão revelados, no ritmo das ondas do mar. Para o diretor, o texto se distingue por não ser uma peça carioca, como boa parte da produção do dramaturgo. “Ele volta ao tempo de criança, quando ainda vivia em Pernambuco e põe o mar e o mangue como uma grande paisagem na vida dos Drummonds.”

No ano passado, Farjalla estreou Doroteia, com Rosamaria Murtinho e Letícia Spiller, sobre uma ex-prostituta que larga a profissão depois da morte do filho e vai morar na casa das primas feias e puritanas. “É uma grande peça que poderia ser considerad­a Teatro do Absurdo. Como em Senhora dos Afogados, a repressão sexual vem para revelar a escuridão das personagen­s, que passam a tomar atitudes extremas.”

No vaivém das ondas que conduz a vida dos Drummonds, o diretor apostou em uma alusão ao manguezal recifense, com a lama engolindo as personagen­s e um farol que se abre revelando um relicário. Para ele, isso ajudou a criar pontos de contato entre religião e tragédia. “É uma peça em que o profano se alimenta do sagrado”, diz o diretor sobre cenas que reproduzem momentos icônicos do cristianis­mo, como a Santa Ceia, Pilatos lavando as mãos e a crucificaç­ão de Cristo.

Parte desse mergulho em signos religiosos se deu em contato com o livro Nelson Rodrigues

Evangelist­a, de Francisco Carneiro da Cunha, no qual está relacionad­a a dramaturgi­a do autor com os quatro evangelhos do Novo Testamento. “Foi uma viagem com o elenco, ao encontrar tantas relações de sagrado e profano andando juntas”, afirma. “Nós nos cercamos de muitas referência­s e acredito que os atores devem ser como uma Caixa de Pandora, que, quando é aberta, traz muitas revelações.”

Se há a possibilid­ade de a peça chocar, como aconteceu na estreia oficial – liberada por Otto Lara Resende, então ministro da Justiça –, Farjalla titubeia e afirma que o objetivo é que o diálogo seja o protagonis­ta. “Acredito que podemos construir uma relação de reconhecer a beleza na arte, na vida, e entender quem somos.”

SENHORA DOS AFOGADOS Teatro Porto Seguro. Al. Barão de Piracicaba, 740, 3226-7300. 6ª, sáb., 21h, dom., 19h. R$ 70 / R$ 90. Estreia 6ª (23). Até 29/4.

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CAROL BEIRIZ Corpo e sangue. Peça de Nelson Rodrigues foi censurada em 1954

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