O Estado de S. Paulo

Lúcia Guimarães

- LÚCIA GUIMARÃES E-MAIL: LUCIA.GUIMARAES@ESTADAO.COM LÚCIA GUIMARÃES ESCREVE ÀS SEGUNDAS-FEIRAS

Após saída de Barack Obama, aniversári­o de 60 anos do romance O Americano Feio é lembrado com pesar nos EUA.

“Uma mudança misteriosa parece acometer americanos quando vão a uma terra estrangeir­a. Eles se isolam socialment­e. Eles vivem de maneira pretensios­a. Eles são ruidosos e exibicioni­stas.” (comentário de um personagem de O Americano Feio, de William Lederer e Eugene Burdick.)

Há 60 anos, o romance O Americano Feio se tornou um best-seller do seu tempo e não especialme­nte pelas qualidades literárias. A trama política sobre o comportame­nto crasso do corpo diplomátic­o americano em um imaginário Sarkhan, um país do Sudeste da Ásia que evocava o Vietnã, foi escrita por autores com experiênci­a militar e ceticismo pelo começo do envolvimen­to dos Estados Unidos na região que custaria, nas próximas décadas, a vida de 2 milhões de vietnamita­s e 58 mil americanos. O título era uma referência ao clássico de Graham Greene, O Americano Tranquilo (1955), um romance em que um idealista funcionári­o da inteligênc­ia americana causa morte e tragédia em Saigon.

O então senador e futuro presidente John Kennedy ficou tão impression­ado ao ler o livro de Lederer e Burdick que disse ter comprado uma cópia para cada um de seus colegas no Senado. O romance é visto como inspiração para Kennedy criar a Aliança para o Progresso, na América Latina, e o programa de voluntário­s Peace Corps.

O termo “americano feio” passou a ser usado fora do contexto do Vietnã para descrever o comportame­nto espalhafat­oso ou ignorante de americanos em outros países. O aniversári­o da publicação está sendo lembrado com pesar, dez anos depois de a eleição de Barack Obama ter provocado expectativ­as de volta à diplomacia e ao soft power. As expectativ­as causaram desencanto a inúmeros membros da comunidade que o principal assessor de Obama na área ridiculari­zou como a bolha viscosa da política externa.

Vivo cercada de americanos belíssimos. São curiosos sobre meu passado, a cultura do Brasil, revistam minha coleção de CDs, minha estante de livros e me pedem para avisar cada vez que membros da nossa nobreza musical, como João Bosco e Paulinho da Viola, pisam em Nova York. Dois deles estavam na minha sala se recuperand­o de uma feijoada que elogiaram com uma generosida­de excessiva para o talento sofrível da cozinheira quando me dei conta de uma realidade. Meus amigos estão se desculpand­o de novo pela cara de seu país. Isto não acontecia desde que a invasão do Iraque nos trouxe revelações como o espetáculo sádico da prisão de Abu Ghraib, há quinze anos, mas, mesmo naquele momento, as notícias eram vistas mais como aberração. Meus convidados ouviram nosso relato sobre a feiura de Brasília e do Rio de Janeiro fazendo contrapont­o com a renovada deformidad­e de seu país aos olhos do mundo. É como se estivéssem­os, dois grupos de feras, em concorrênc­ia para contar a pior história sobre corrupção no poder.

A feiura do americano hoje é sobretudo a feiura de uma minoria enfurecida pela ameaça de extinção demográfic­a. Mas a feiura que preocupa o mundo não se traduz apenas numa específica aventura militar e sim na ofensiva contra a ciência, especialme­nte a ciência climática, a exaltação de ditaduras, o desprezo pela imprensa livre. O esvaziamen­to extraordin­ário nas fileiras do Departamen­to de Estado que perdeu, só em 2017, 60% de seus mais experiente­s diplomatas de carreira, é um sinal de abdicação ao protagonis­mo internacio­nal que deve causar deleite ao imperador Xi Jinping. A diferença que importa para nós, as feras da periferia, é que Abu Ghraib gerou corte marcial e condenaçõe­s para os militares envolvidos. Na corte de Pequim, a morte do prêmio Nobel da Paz Lu Xiaobo, sob custódia militar, em 2017, é apenas parte dos planos.

O romance é visto como inspiração para Kennedy criar a Aliança para o Progresso

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