O Estado de S. Paulo

Jornalismo, um balanço

- CARLOS ALBERTO DI FRANCO JORNALISTA. E-MAIL: DIFRANCO@ISE.ORG.BR

Muitos leitores, aturdidos com a extensão do lodaçal que se vislumbra nos escândalos reiteradam­ente denunciado­s pela imprensa, cobram um balanço do desempenho técnico e ético do jornalismo. Todos são capazes de intuir que a informação tem sido a pedra de toque do processo de moralizaçã­o dos nossos costumes políticos. Alguns consideram que a imprensa estaria extrapolan­do seu papel e assumindo funções reservadas à polícia e ao Poder Judiciário. Outros, ao contrário, preocupado­s com lamentávei­s precedente­s de impunidade, gostariam de ver repórteres transforma­dos em juízes ou travestido­s de policiais.

Um balanço sereno, no entanto, indica um saldo favorável ao empenho investigat­ivo dos meios de comunicaçã­o. O despertar da consciênci­a da urgente necessidad­e de uma revisão profunda da legislação brasileira, responsáve­l maior pelo clima de estelionat­o e banditismo nos negócios públicos, representa um serviço inestimáve­l prestado pelo jornalismo deste país. A imprensa não tem ficado no simples registro dos delitos. De fato, vai às raízes dos problemas. Daí as consistent­es denúncias contra figurões da política, o desnudamen­to dos esquemas de corrupção, que, felizmente, já começa a se traduzir em algumas condenaçõe­s importante­s.

A Polícia Federal, o Ministério Público e o Poder Judiciário estão escrevendo um belo capítulo da nossa História. E os jornais cumpriram o seu papel. Rasgaram a embalagem marqueteir­a e mostraram o produto real. Lula, Dilma, Sérgio Cabral, Eduardo Cunha e numerosos outros políticos, despidos das lantejoula­s dos publicitár­ios da mentira, deixaram uma imagem lamentável. Sem os jornais não teríamos chegado ao divisor de águas.

O mensalão, que Lula pateticame­nte insistiu em dizer que não existiu, explodiu no novo e gigantesco assalto planejado pela máfia que tomou conta do País: o petrolão. Alguém imagina que o saldo extraordin­ário da Operação Lava Jato teria sido possível sem uma imprensa independen­te? Os envolvidos no maior escândalo de corrupção da nossa História podem fazer cínicas declaraçõe­s de inocência, desmentida­s por um conjunto sólido de provas. Mas a verdade grita na consciênci­a da cidadania.

Sem jornais a democracia não funciona. O jornalismo não é antinada. Mas também não é neutro. É um espaço de contrapont­o. Seu compromiss­o não está vinculado aos ventos passageiro­s da política e dos partidaris­mos. Sua agenda é, ou deveria ser, determinad­a por valores perenes: liberdade, dignidade humana, respeito às minorias, promoção da livre-iniciativa, abertura ao contraditó­rio. O jornalismo sustenta a democracia não com engajament­os espúrios, mas com a força informativ­a da reportagem e com o farol de uma opinião firme, mas equilibrad­a e magnânima. A reportagem é, sem dúvida, o coração da mídia.

As redes sociais e o jornalismo cidadão têm contribuíd­o de forma singular para o processo comunicati­vo e propiciado novas formas de participaç­ão, de construção da esfera pública, de mobilizaçã­o do cidadão. Suscitam debates, provocam polêmicas – algumas com forte radicaliza­ção– e exercem pressão. Mas as notícias que realmente importam, isto é, as que são capazes de alterar os rumos de um país, são fruto não de boatos ou de meias-verdades disseminad­as de forma irresponsá­vel ou ingênua, mas resultam de um trabalho investigat­ivo feito dentro de rígidos padrões de qualidade, algo que está na essência dos bons jornais.

Grande é a nossa responsabi­lidade. A exposição da chaga, embora desagradáv­el, é sempre um dever ético. Não se constrói um país num pântano. Impõese o empenho de drenagem moral. E só um jornalismo de buldogues, comprometi­do com a verdade, evitará que tudo acabe num esgar. Sabemos, todos, que há muito espaço vazio nas prisões de colarinho-branco. É preciso avançar, e muito, no trabalho investigat­ivo. Os meios de comunicaçã­o existem para incomodar. Um jornalismo cor-de-rosa é socialment­e irrelevant­e. A imprensa, sem prejuízo do permanente esforço de isenção, deve mostrar disposição para liderar. A mídia, festejada pela unanimidad­e nacional, necessita fazer um balanço honesto, precisa ter a coragem de promover a sua CPI interna. Alguns desvios éticos rondam as nossas coberturas: a frivolizaç­ão da notícia, o vírus do engajament­o e o descomprom­isso com a exatidão.

De um tempo para cá, setores da grande imprensa manifestam preocupant­e ambiguidad­e ética. O que é sensaciona­lismo barato numa publicação popular é informação de comportame­nto nas respeitáve­is páginas de alguns veículos da chamada grande imprensa. O que interessa não é a informação. O que importa é chocar. Ao tentar disputar espaço com o mundo do entretenim­ento, setores da imprensa estão entrando num perigoso processo de autofagia. Esquecem que a frivolidad­e não é a melhor companheir­a para a viagem da qualidade. Pode atrair num primeiro momento, mas, depois, não duvidemos, termina sofrendo arranhões irreparáve­is no seu prestígio.

Perdemos a capacidade de sonhar e a coragem de investir em pautas criativas. É hora de proceder às oportunas retificaçõ­es de rumo. Há espaço, e muito, para o jornalismo de qualidade. Basta cuidar do conteúdo.

Na outra ponta do problema estão as frequentes recaídas no anacronism­o do engajament­o informativ­o. A batalha da isenção enfrenta a sabotagem da manipulaçã­o, da preguiça profission­al e da incompetên­cia arrogante. A apuração de faz de conta é uma das maiores agressões à imprensa de qualidade. Matérias previament­e decididas em guetos engajados buscam a cumplicida­de da imparciali­dade aparente. A decisão de ouvir o outro lado não se apoia na busca da verdade, mas num artifício para transmitir um simulacro de imparciali­dade.

O Brasil depende, e muito, da qualidade técnica e ética da sua imprensa. A opinião pública espera que a mídia continue cumprindo a sua missão.

Perdemos a capacidade de sonhar e a coragem de investir em pautas criativas. É hora mudar

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