O Estado de S. Paulo

Lula é um assombro

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Enquanto alguns petistas, demonstran­do certo bom senso, já consideram Lula da Silva apenas um retrato na parede e se movimentam para a previsível luta pela sobrevivên­cia política nesse novo cenário sem seu campeão de votos, o demiurgo de Garanhuns continua em campanha como se realmente pudesse se candidatar à Presidênci­a, apesar de ser um corrupto condenado em duas instâncias. Mais do que isso: o ex-presidente está bastante empenhado na quase impossível tarefa de superar-se a si mesmo, ele que já se considera o maior brasileiro da história.

Lula não parece contente em ser apenas um novo messias, com quem já se comparou diversas vezes – a última foi depois da confirmaçã­o, em segunda instância, da condenação por corrupção, quando declarou que Cristo foi punido porque “vinha fazer uma coisa boa”, assim como ele. Os fiéis da seita lulopetist­a pegaram o embalo e chegaram a retratar Lula como Cristo numa cruz, dizendo que ambos foram “condenados sem prova”.

Ele também não parece satisfeito em somente perfilar-se com grandes heróis da história nacional, como Tiradentes. O alferes, por exemplo, serviu para ilustrar o raciocínio de Lula segundo o qual nem sua morte seria capaz de fazer cessar sua labuta como “um despertado­r de consciênci­as”. Em discurso, Lula afirmou que Tiradentes foi enforcado e esquarteja­do “para que ninguém nunca mais ousasse gritar pela independên­cia”. Mas “a mesma elite” que matou Tiradentes, explicou Lula, usou o condenado mais tarde como “referência heroica” para “garantir o apoio à Proclamaçã­o da República”.

Ao ex-presidente também não basta mais ser Nelson Mandela. O exemplo do líder sulafrican­o serviu-lhe apenas como referência para a possibilid­ade de sua volta triunfal depois que passar sua temporada na cadeia: “Prenderam o Mandela, ele ficou preso por 27 anos, nem por isso a luta diminuiu. Ele voltou e foi eleito presidente”. Assim como no caso de Mandela, disse Lula, a prisão não impedirá que sua mensagem se espalhe. “Podem prender o Lula, mas as ideias já estão na cabeça dos brasileiro­s”, disse o ex-presidente, referindo-se a si mesmo em terceira pessoa, como se o personagem inventado pelo ex-metalúrgic­o tivesse vida própria.

Mais: Lula considera que não é mais uma pessoa, mas uma inspiração. “Eles não podem prender o sonho de liberdade, a esperança, e o Lula é apenas um homem de carne e osso”, discursou o ex-presidente em outra oportunida­de. E na quarta-feira passada, Lula assumiu de vez essa pretensão estapafúrd­ia. “O problema não é o Lula, são os milhões de Lulas”, bradou, para em seguida atingir um patamar desconheci­do de megalomani­a. “Eles estão lidando com um ser humano diferente. Porque eu não sou eu. Eu sou a encarnação de um pedacinho de célula de cada um de vocês”, declarou a seus adoradores, misturando política com citologia.

Ao se considerar biologicam­ente integrado aos petistas e aos pobres, Lula explicita, de maneira mais clara que a habitual, sua visão divina do exercício do poder. Ao eliminar totalmente a distância que o separa de seus eleitores, Lula quer dizer que, uma vez eleito, estarão dispensada­s todas as formas institucio­nais de mediação previstas numa democracia. Não haverá mais diferença entre governante e governados, e toda a ordem que emanar desse líder será, por princípio, uma determinaç­ão do próprio povo – a cujos integrante­s é dispensado pensar por si mesmos, já que esse fardo é daquele que encarna, nas palavras de Lula, todas as células do povo. A próxima etapa será dizer que seu poder emana dos céus.

Se o líder é, em si mesmo, o próprio corpo do povo, tornase impossível contrariá-lo – muito menos prendê-lo. Bem, pelo menos é nisso que Lula, se se sentisse humano, gostaria que o Brasil acreditass­e. Mas, na dura realidade do mundo, a única coisa que Lula está conseguind­o encarnar é a figura de um político que se transformo­u em uma caricatura grotesca de si mesmo. Diante disso, fica fácil entender por que, embora façam campanha em defesa de Lula, vários petistas, na prática, já o tratam como uma sombra do passado.

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