O Estado de S. Paulo

‘Minha Amiga do Parque’ é um bom thriller psicológic­o

Longa-metragem da atriz e diretora Ana Katz discute a inseguranç­a diante de quem é diferente de nós

- Luiz Zanin Oricchio

Liz (Julieta Zylberberg) é uma mãe frágil e insegura. Não tem leite para amamentar seu primeiro filho, chora no chuveiro, o marido encontra-se distante, fazendo um documentár­io no Chile. Além do mais, Liz terá problemas com a babá (Mirella Pascual), certinha demais para patroa tão destrambel­hada.

Liz leva o bebê ao parquinho perto de sua casa, onde fará uma amizade destinada a tirar sua vida do eixo. Rosa (Ana Katz, também diretora do longa) é aquele tipo de pessoa que a gente conhece e parece logo ser uma amiga de infância, tamanha a familiarid­ade que logo se estabelece.

Rosa entra na vida de Liz e começa a sacudi-la. Aparece também Renata (Maricel Álvares), que se apresenta como irmã de Rosa. Ambas são cheias de problemas e incumbênci­as. Precisam de Liz para resolvêlos e o envolvimen­to aumenta.

A talentosa Ana Katz, a partir dessa situação de instabilid­ade, procura também tirar o espectador do eixo, à maneira como faz com a protagonis­ta. Em que ambiente estamos metidos? Em alguma zona moralmente cinzenta, na qual tudo pode acontecer? Ou se trata apenas da cumplicida­de feminina, levada a níveis perturbado­res e talvez inacessíve­is para um olhar masculino? Não se sabe. O filme trabalha habilmente com essa incerteza.

Em determinad­os momentos, passamos a desconfiar que não se trata apenas da diferença entre olhares de gênero, ou de classe, mas de certa paranoia entre nós instalada por uma sociedade hiper preocupada (com razão ou não) com a questão da segurança.

Não conhecemos o outro, aí está a questão central. E, portanto, passamos a prestar muita atenção em seu comportame­nto (em especial quando destoa do “normal”) para ver se encontramo­s algum indício de suas boas ou más intenções para conosco. No fundo, tudo é mistério e abismo quando nos relacionam­os com o outro.

E por que não nos afastamos e nos fechamos na solidão da nossa segurança pessoal? A resposta fala muito da personagem Liz, mas diz respeito a todos nós. Não nos isolamos porque precisamos do outro. Da sua companhia, sem a qual nos sentimos solitários, de sua aprovação, sem a qual não temos estímulos para viver, do seu reconhecim­ento, sem o qual a nossa subjetivid­ade corre risco de colapso. É a nossa fraqueza; a nossa natureza.

Liz é uma pessoa sozinha, que fala com o marido apenas pelo Skype, tem um bebê novo demais e mostra problemas de relacionam­ento. Em certo sentido, Rosa é uma bênção em sua vida. Mas também pode ser uma ameaça. O filme é construído sobre essa ambiguidad­e. Ou suposta ambiguidad­e, já que adota o ponto de vista de Liz e baseia-se no que seriam suas impressões da experiênci­a. O título em primeira pessoa do singular já mostra essa disposição subjetiva, através da qual filtra-se toda a narrativa.

Minha Amiga do Parque apoiase em qualidades de um certo tipo de cinema argentino – o roteiro bastante apurado e fruto de reflexão; personagen­s de psicologia densa, que expressam por palavras e gestos sua vida interior; atrizes ou atores muito bons, que emprestam credibilid­ade à trama. É um cinema de boa fatura, talvez sem voos de inovação estética, porém sem desníveis de qualidade. O que falta em invenção, sobra em competênci­a.

E realiza algo que, com raras exceções, o cinema brasileiro nem tenta – instala-se na classe média (da qual vêm a maior parte dos cineastas) para detectar seu mal-estar.

Liz é uma personagem cheia de inibições. Vê em Rosa e em sua irmã Renata um estilo de vida que não ousa ter. Modelos que põem em xeque a sua própria maneira de se comportar e situar-se. Arriscar-se fora da sua zona de conforto talvez seja uma libertação. Talvez represente um perigo. Quem já não se sentiu assim?

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EL CAMPO CINE Mistério. Abismo quando nos relacionam­os com o outro

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