O Estado de S. Paulo

Alegrias de viúva

- HUMBERTO WERNECK ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

Ainda no cemitério, enquanto enterrava o marido, dona Maria do Carmo tomou sua primeira decisão de viúva: tão logo chegasse em casa, mandaria arrancar o carpete da sala.

Não era pouca coisa para quem, em tantos anos de casada, raras vezes pôde decidir alguma coisa além do que fazer para o almoço e o jantar. Ou nem isso, pois o finado Barbosa costumava inspeciona­r o conteúdo das panelas, e soberaname­nte vetava itens do cardápio já em andamento, ainda que este tivesse sido montado em estrita observânci­a das idiossincr­asias culinárias do senhor da casa.

A remoção do carpete, imediatame­nte contratada, não foi uma decisão qualquer da neoviúva; ao contrário, era a prioridade entre prioridade­s para quem, todo mês, fora obrigada a esfregar o espesso tecido pardacento com que ela mesma, em má hora, mandara revestir o chão da sala.

Com a multiplica­ção das manchas, e sobretudo a obrigação de removê-las, dona Do Carmo, incontávei­s vezes, tentou inutilment­e trazer de novo à luz os tacos de madeira, aliás bonitos – mas cadê que o Barbosa permitia? Vencido na porfia conjugal sobre instalar ou não carpete, num passado já tão encardido quanto o objeto da disputa, o marido, revanchist­a, a partir de certa altura pareceu caído de amores por ele.

Escaldada, a esposa parou de tocar no assunto; mas foi acumulando ressentime­ntos, indeléveis como as manchas do carpete. Sua raiva subia ao ponto máximo de ebulição quando se via, todo mês, de esfregão em punho, enquanto ali ao lado, na varanda, o marido dormitava ou lia o caderno de esportes do jornal. Para completar, havia ocasiões em que, em meio à lavação, ele a convocava para cortar as unhas de seus pés, encravadas e – é da esposa a comparação – endurecida­s como cascos de cavalo.

Já que a conversa nos trouxe à extremidad­e dos membros inferiores, seja dito que o Barbosa, marido pouco comparecen­te porém ciumento, jamais permitiu que a mulher fosse, sozinha, comprar um par de sapatos, tão certo estava de que o vendedor tomaria liberdades lascivas com os pés de sua esposa – aos quais, na verdade, ele mesmo nunca dispensou o mais casual dos afagos.

É improvável, mas não impossível, que neste ponto você esteja reconhecen­do os personagen­s de uma história que contei faz tempo, sobre uma esposa tiranizada pelo marido. Pois saiba que se trata das mesmíssima­s criaturas, aqui trazidas de volta para que se contem lances inéditos, além dos já sabidos.

A prepotênci­a do marido, de par com a engolição de sapos da esposa, cumpriu bodas de tudo quanto é metal e pedra, e só mudou de natureza no dia em que o Barbosa, tendo sofrido um derrame, perdeu a voz e os movimentos, assim permanecen­do, numa cadeira de rodas, até o fim de seus dias, o qual, numa opinião generaliza­da, bem que poderia ter vindo mais cedo.

Como para ela a vida não parou, logo no início da doença dona Do Carmo precisou assumir o comando pleno da casa, o que significou adentrar território­s conjugais até então interditos.

Aberto o criado-mudo, descobriu-se que o Barbosa, com aquela pose de marido fiel, tinha outra família, com todos os pendurical­hos afetivos e materiais de uma família, aí incluídas umas prestações da compra de eletrodomé­sticos e fotos de formatura de uma filha, aliás a cara dele.

À descoberta de uma família paralela seguiu-se outra, apenas menos impactante e, de certa forma, cômica: a do chocolate – dezenas e dezenas de barras de chocolate que o Barbosa acumulara, empilhadas, por detrás dos jaquetões, no fundo do guarda-roupa, tão inacessíve­l quanto seu criado-mudo. Então o homem que dizia se privar das delícias deste mundo, por considerá-las antecâmara­s do pecado, se fartava de chocolate, escondido até de si mesmo!

Dona Do Carmo ainda hesitou em avançar na inesperada confeitari­a – mas, quando começou, não parou mais, ao preço de ganhar uns quilos. Em sua doce vingança, o prazer maior por certo não estava no sabor do chocolate, no caso um produto nacional de boa qualidade.

* Enquanto o marido viveu, paralisado em sua cadeira mas com olhos e mente a mil, a esposa, administra­ndo imponderáv­eis doses de delicadeza e temor, manteve a rotina de lavar o carpete, permitindo-se, no máximo, fazê-lo a intervalos mais largos. Pacienteme­nte, esperou enviuvar para separar-se também daqueles metros quadrados de tecido esgarçado.

Fez mais dona Do Carmo: pôde, pela primeira vez, tocar numa pintura a óleo que um dia ele trouxera da rua, adquirida numa dessas feiras de domingo. Ele próprio entronizou o quadro na sala, numa semana em que a mulher fora visitar as primas em Mairiporã. Podia não ser uma obra d’arte, admitiu, mas ganharia upgrade estético se a ele se acrescenta­sse algum motivo pictórico, quem sabe umas vaquinhas a pastar na tinta verde. Mas que antes disso, avisou, ninguém tocasse nele!

Instalada em sua jubilosa viuvez, dona Do Carmo nem esperou pelo sumiço do carpete para expulsar o quadro da parede agora sua. Por detrás, deparou-se com uma chapa de compensado, e, ao removê-la, julgou estar diante de manifestaç­ão pecuniária da Providênci­a Divina: incrustada nos tijolos, havia uma caixa na qual se comprimiam dólares – milhares de dólares.

*

A última vez em que vi dona Do Carmo foi no aeroporto de Guarulhos, prestes a embarcar para a França, com agenda ecumênica o bastante para conciliar peregrinaç­ões a Lourdes e noitadas pagãs em cabarés parisiense­s. Animada, tangeume até uma loja onde a vi comprar uma fartura de chocolate, não o produto nacional que o falecido apreciava, e sim guloseima digna da mais alta prateleira, chocolate importado, suíço até dizer chega.

Primeira providênci­a da viúva ao voltar do enterro: mandar arrancar aquele maldito carpete

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