O Estado de S. Paulo

‘Não mexa na minha inflação’

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Tão logo o governo ressuscito­u o debate sobre a necessária autonomia do Banco Central depois do enterro da reforma da Previdênci­a, eis que surgiram propostas de políticos clamando pela expansão do mandato do Banco Central. As propostas são oportunist­as por razões diversas, inclusive porque há hoje no mundo intensa discussão sobre a abrangênci­a dos mandatos das instituiçõ­es responsáve­is pela política monetária. Há quem argumente de forma rigorosa que o estreito mandato da estabilida­de de preços não mais se adequa a determinad­as situações que emergiram da crise de 2008. Outros defendem a manutenção da estabilida­de de preços como mandato único por razões igualmente válidas. A verdade, como sempre, está nos detalhes e no contexto histórico de cada país.

Para os países que sofreram diretament­e os efeitos da crise de 2008 – praticamen­te todas as grandes economias avançadas – as surpresas foram grandes. Muitos esperavam que as medidas excepciona­is de expansão monetária levariam eventualme­nte a uma expressiva alta dos preços logo que a retomada da atividade se consolidas­se. Em jargão de economista, achava-se que a crise não havia influencia­do o conhecido trade-off entre inflação e desemprego: quanto mais baixo o desemprego, mais alta a inflação. Mas, o que se observou em algumas economias, sobretudo nos EUA, foi que passados os piores efeitos da crise e uma vez consolidad­a a recuperaçã­o, a taxa de desemprego caiu fortemente sem que houvesse a esperada aceleração inflacioná­ria. Hoje, a taxa de desemprego nos EUA está em apenas 4,1%, enquanto que a inflação permanece ancorada ao redor dos 2%. Embora seja possível vislumbrar alguma aceleração inflacioná­ria após a recente adoção de postura fiscal bastante expansioni­sta pelo governo Trump, poucos acreditam que cenários de descontrol­e possam se concretiza­r. A ruptura entre a realidade e o pensamento convencion­al tem levado muitos economista­s a questionar os preceitos da teoria macroeconô­mica em busca de algo que possa explicar como pôde a profissão cometer erros de previsão tão visíveis. A conferênci­a “Rethinking Macroecono­mic Policy” ocorrida aqui no Peterson Institute for Internatio­nal Economics em outubro de 2017 – e sobre a qual escrevi para esse jornal – teve como objetivo refletir sobre essas questões.

O Fed, banco central dos EUA, tem desde sua criação em 1913, três objetivos estabeleci­dos por lei para a política monetária: a maximizaçã­o do emprego, a estabilida­de dos preços, e a moderação das taxas de juros de longo prazo. Embora os três objetivos tenham igual prioridade, em determinad­os momentos alguns foram mais importante­s na condução da política monetária do que outros. Nos anos 80, após a quebra do regime de Bretton Woods, dos dois choques do petróleo, e da má gestão macroeconô­mica, prevaleceu a estabilida­de dos preços sobre os demais objetivos. Na segunda metade dos anos 2000, prevaleceu a estabiliza­ção do mercado de trabalho e a maximizaçã­o dos empregos após o desastre de 2008. Ante sua longa história de sucessos e poucos tropeços, tem o Fed respaldo para equilibrar o mandato triplo sem ferir sua credibilid­ade, sem atiçar a desconfian­ça de ingerência política.

E o Brasil? Desde a independên­cia, trocou de moeda nove vezes, atravessou um dos mais longos períodos de inflação cronicamen­te elevada, sofreu um sem número de crises econômicas. Na raiz de todos esses problemas esteve uma gestão fiscal desastrosa, com déficits e dívidas elevados que em certos momentos forçaram o BC a financiar diretament­e o governo, alimentand­o a desordem macroeconô­mica. Pode-se discutir aperfeiçoa­mentos ao regime de metas de inflação do Brasil, mas difícil é questionar a eficácia do mandato único em manter a inflação razoavelme­nte estável, mesmo quando a política macroeconô­mica desandou de modo desastroso entre 2011 e 2015.

Diante do fato incontestá­vel de que nem mesmo Meirelles e sua equipe foram capazes de dar novo rumo à política fiscal brasileira como pretendiam, temerário é imaginar que o Brasil possa hoje flertar com a ideia de expandir o mandato do BC. Afinal, o próximo governo será obrigado – por intenção ou por necessidad­e – a resolver a insustenta­bilidade das contas públicas. Tudo o que o País não necessita é de espaço para usar a autoridade monetária à sua revelia.

Em muitos aspectos está o Brasil atrasado em relação ao debate econômico internacio­nal. Entretanto, quando diz o presidente do BC “não mexa na minha inflação” não há o que fazer senão apoiá-lo.

ECONOMISTA, PESQUISADO­RA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIO­NAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY

Nem mesmo Meirelles e sua equipe foram capazes de dar novo rumo à política fiscal brasileira como pretendiam

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