O Estado de S. Paulo

Verissimo

- LUIS FERNANDO VERISSIMO ESCREVE ÀS QUINTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

O golpe de 1964 e a intervençã­o de 2018 refletem mania de apelar para os militares como instância final antes do caos.

Progredimo­s. Em 1964, os militares se autoconvoc­aram para salvar o Brasil do comunismo, do anarcossin­dicalismo, do tropicalis­mo e de outras ameaças à civilizaçã­o cristã, definidas pelo departamen­to de estado americano e pelo Magalhães Pinto. Governaram o País durante 20 anos, deixando um rastro de arbítrio e sangue – e, reconheçam­os, um passável sistema nacional de comunicaçã­o. Em 2018 um general foi chamado para pôr ordem na bagunça do Rio, com uma missão definida, num local definido e contra um inimigo definido – que em 64 já existia, só não tinha fuzis de assalto. Ao contrário dos generais de 1964, o general de 2018 não vai se instalar no poder – ou vai, não se sabe, bata na madeira – e seu mandato, também definido, é de um ano. Se o general de agora tiver sucesso sua intervençã­o pode se expandir no espaço e no tempo, para o resto do País e para 20 anos ou mais. De qualquer maneira, o golpe de 1964 e o convite para intervir de 2018 refletem a mesma mania nacional de apelar para os militares como uma espécie de instância final antes do caos. Ou o caos, ou eles. Como se o apelo aos militares não fosse um ingredient­e do caos e uma evidência de falência.

Não se sabe como será a convivênci­a da população do Rio com as forças de ocupação. Sempre me impression­ou o relato que li, certa vez, sobre os últimos dias antes da queda de Berlim, na Segunda Guerra Mundial. As tropas soviéticas avançando pelos arrabaldes da cidade em ruínas, aniquiland­o os poucos focos de resistênci­a que ainda encontrava­m – e os serviços públicos do município funcionand­o normalment­e, o leite e o correio sendo entregues como sempre, a não ser em áreas onde os combates eram mais intensos, e a vida seguindo suas rotinas. Os cariocas sabem como é viver nos arredores de zonas de guerra, que muitas vezes estão do outro lado da rua. Mas as rotinas que convivem com o tiroteio no Rio não são como as surpreende­ntes rotinas que desprezava­m a guerra à sua volta, em Berlim, para conservar uma normalidad­e possível. No Rio, há rotinas que fatalmente sobreviver­ão à intervençã­o, por mais bem-sucedida que esta seja. Não apenas a rotina da corrupção policial e do indecente oportunism­o político, que o general não vai fazer desaparece­r, mas a rotina de questões raramente mencionada­s, quando se fala em narcotráfi­co. Como, por exemplo, a outra ponta do comércio de drogas, a dos usuários que a favela abastece. Os que sustentam o mercado mas nunca aparecem, e só morrem de overdose.

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