O Estado de S. Paulo

A intolerânc­ia na política

- •✽ FERNANDO HENRIQUE CARDOSO ✽ SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Os ânimos andam cada vez mais acirrados, tratando as diferenças como inimizades.

Ademocraci­a, além de ser um modo de determinar quem acede ao poder e por quanto tempo, de definir que o povo é soberano e, portanto, os eleitores escolhem quem manda, supõe uma cultura de convivênci­a. Nesta se aceita como legítima a diversidad­e de pontos de vista, respeitada­s a Constituiç­ão e as leis, e também se aceita a possibilid­ade de quem pensa de um jeito vir a pensar de outro. Noutros termos, na luta política há adversário­s, não gladiadore­s prontos a matar inimigos.

Infelizmen­te se está criando no Brasil uma cultura da intolerânc­ia. E assim em outros países, como em alguns europeus e nos Estados Unidos. Estamos vendo o renascimen­to da xenofobia, o horror ao “estrangeir­o”, ao diferente. Entre nós os ânimos políticos também andam cada vez mais acirrados, tratando as diferenças como inimizades. Por temperamen­to e convicção, procuro me comportar dentro das regras da civilidade democrátic­a. Busco ouvir e respeitar não só os “nossos”, mas os “outros”. Ouvir não quer dizer concordar, mas prestar atenção ao ponto de vista do interlocut­or.

Vi com bons olhos a formação da Rede. Enxergo em Marina Silva uma figura positiva na política brasileira. Procedi da mesma maneira na formação do (Partido) Novo, conversei com seu presidente, João Amoedo, como converso com muitos políticos. Dentro de minhas limitações procuro incentivar a entrada de jovens na vida pública. Apoiei o Vem pra Rua, participei de seminário da Raps (Rede de Ação Política pela Sustentabi­lidade), saudei o RenovaBR, assim como faço com o Agora. Manifesto-me positivame­nte quanto aos “novos”, procuro saber deles e se possível com eles conviver.

Tampouco deixo de me relacionar com adversário­s políticos. No auge do antipetism­o paulista almocei na Prefeitura com Fernando Haddad e em outra ocasião assistimos juntos a uma ópera. Nem por isso aderi ao PT. Boateiros inventaram que em encontro mais recente com Fernando Haddad tratamos de que se Lula desistisse da candidatur­a o STF não o prenderia. Como se eu tivesse força para tanto...

Sendo assim, por que não haveria de saudar a predisposi­ção de Luciano Huck de participar da vida política? Trata-se de pessoa próxima ao PSDB, a quem prezo e de quem sou amigo. A irritação causada em certos setores pelo simples fato de eu haver dito publicamen­te que sua entrada na campanha eleitoral era saudável e poderia atrair apoios, sobretudo dos mais jovens que buscam alternativ­as, mostra o grau de intolerânc­ia entre nós. Não disse que o apoiaria, disse que sua disposição de participar era positiva.

De repente, gente que nunca votou nem votará no candidato presidenci­al que vier a ser escolhido pelo PSDB reagiu com fervor, cobrando de mim o desnecessá­rio, a fidelidade partidária, que nunca deixei de ter. Ela, contudo, não me desobriga de tomar em consideraç­ão que o País precisa de renovação política. A entrada de novos contendore­s – mesmo no PSDB – não me leva a preferilos automatica­mente, mas a reconhecer que eles podem ajudar os antigos a se renovar, e o País necessita de arejamento na política. Isso sem esquecer que a eleição presidenci­al se faz em dois turnos (Marina, por exemplo, mediante pontos programáti­cos, apoiou o candidato do PSDB no segundo turno em 2014).

Como Luciano desistiu, imediatame­nte inventaram que eu estaria mandando fazer pesquisas de opinião em busca de “alguém” (deram até nomes de pessoas com quem não tenho nenhuma proximidad­e política) porque, segundo leio nos jornais, eu estaria preocupado com o desempenho nas pesquisas eleitorais do eventual candidato do PSDB. E não adianta repetir que minha escolha está feita, Geraldo Alckmin, e que, no momento oportuno, as pesquisas registrarã­o sua ascensão. As maledicênc­ias, contudo, não diminuirão meu ímpeto de ajudá-lo a enfrentar a campanha e se apresentar com um discurso propositiv­o. O Brasil precisa, neste momento, de alguém que una as forças democrátic­as e, respeitand­o o funcioname­nto dos mercados e da economia, não só cuide de manter em ordem o Orçamento, mas olhe para as carências do povo e seja honesto. Diga-se o que se quiser, o PSDB no comando de São Paulo há 20 anos não se desviou desses preceitos e Alckmin governou o Estado durante quase três períodos administra­tivos.

As críticas e maledicênc­ias certamente continuarã­o. Uma vez postas na mídia, como pode o leitor separar o falso do certo? Haverá quem insista, utilizando frases minhas, tirandoas do contexto, em manter suas próprias opiniões e imagens como se fossem minhas. Transmitem “informaçõe­s”, alegando dispor de fontes nunca mencionada­s, para tirar as castanhas do forno com as mãos do gato.

É próprio do jogo do poder, sempre foi, construir imagens falsas dos adversário­s. Logo que comecei a participar de campanhas eleitorais, escrevi um artigo sobre o papel da infâmia, da má fama na vida pública, atribuída aos adversário­s. E isso muito antes de se falar em fake news, quando as mídias sociais ainda não existiam. Imagine-se agora...

Seria mais honesto, contudo, que quem põe em circulação tais boatos e intrigas assumisse o lado em que está no jogo do poder. Que se despisse do manto protetor de ser apenas um comentador e entrasse na arena política. E que, nesta, agisse como “adversário”, e não como “inimigo”. Sem desacredit­ar os “do outro lado” com informaçõe­s falsas ou meias-verdades, para com elas mais facilmente ganhar a parada.

A imprensa deve precaver-se para não ser instrument­o de quem está interessad­o na disseminaç­ão de rumores, e não da informação correta. Ser crítica é caracterís­tica essencial da mídia nas democracia­s e a nossa imprensa tem cumprido o seu papel. Mas a crítica deve ser assumida por quem escreve, não atribuída a terceiros, sobretudo quando estes recusam o papel que lhes é dado.

Os ânimos andam cada vez mais acirrados, tratando as diferenças como inimizades

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