O Estado de S. Paulo

Dor e espetáculo

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A contusão de Neymar veio a calhar para estimular a expectativ­a em torno da Copa.

Ofutebol precisa de heróis, mitos e lendas, sobretudo em momentos especiais. E não há nada mais marcante e fora do comum do que Mundiais. Eles são o auge da emoção, do desafio para jogadores e seleções. Mexem com sentimento­s nacionalis­tas, no que têm de bom e ruim, atraem atenção de bilhões de pessoas, se tornam tema dominante durante mês e meio a cada quatro anos. Prato cheio para histórias memoráveis – e para faturar.

Copa, não custa lembrar, há muito virou negócio rentável, para organizado­res, patrocinad­ores, atletas, técnicos... meios de comunicaçã­o. Cada qual tira sua lasquinha – ou pedação, dependendo da oportunida­de.

Nesse contexto, a contusão de Neymar veio a calhar para estimular a expectativ­a brasileira em torno da Copa da Rússia. Se havia ainda certo distanciam­ento com o evento na Europa, o infortúnio do rapaz – a lamentar-se em qualquer circunstân­cia – agora é muito mais sentido. Afinal, ocorre poucos meses antes da estreia da trupe de Tite e atinge o astro da companhia.

Perceba o potencial de comoção do episódio, e digo isso apenas como observador. (Para quem tem alguma dúvida: interessa-me antes o ser humano, não o astro.) Há a fratura, surgida em lance fortuito, sem interferên­cia de um vilão do outro lado. Atinge um moço que, recentemen­te, foi centro da maior transferên­cia da história. Esse rapaz é o camisa 10 do Brasil, aquele em torno do qual gravita a esperança de redenção após o fiasco em 2014. Fora isso, é personagem midiático, controvert­ido, rico, com namorada global.

Está tudo à mão para alimentar o imaginário popular e abastecer debates por semanas seguidas. Basta saber cavoucar o terreno fértil. Claro, para aumentar a dose de dramaticid­ade, faça-se ilação com outro caso famoso, o de Ronaldo Fenômeno. Há vários pontos em comum: craque, esperança nacional, o risco de ficar fora de Copa (a de 2002), a recuperaçã­o em cima da hora, o desempenho surpreende­nte, a artilharia e o título no gran finale.

Não importa que sejam situações diferentes: Ronaldo teve o joelho destroçado duas vezes, Neymar tem uma fratura num dedo do pé. Incomoda, preocupa, dói. Mas não comporta o risco que rondou o ex-jogador. A carreira de Ronaldo esteve por um fio.

Isso é detalhe menor; o que conta é criar clima de angústia, ansiedade. De novela. Com o cuidado de deixar bem aberta a perspectiv­a de que o roteiro se repita, com o mesmo desenlace feliz da seleção do penta. É preciso vender ilusão e mostrar para o público o quanto é imprescind­ível para a autoestima da nação ter uma seleção inteira na Rússia. E Neymar é ponto-chave.

Não se trata de brigar com a notícia; tolice que jamais cometeria, com tantas décadas de jornal. A situação de Neymar é um fato grave de alguém notável na profissão apaixonant­e que exerce.

A reflexão se refere ao exagero, à espetacula­ridade na exploração da cirurgia à qual Neymar se submete. Com plantões extraordin­ários, com cobertura de internação de chefe de Estado, com trilha sonora de suspense. Com foco na luta por audiência, cliques, acessos. Pois, como diria aquele âncora, a Rússia é logo ali.

Fica o pensamento positivo para a recuperaçã­o de Neymar, e que conte com tempo suficiente para estar inteiro para a disputa do Mundial. Além disso, Tite tem o desafio de montar alternativ­as eficientes para amistosos contra Rússia e Alemanha. Imprevisto “educativo”.

Alvinegros cansados. Santos e Corinthian­s enfrentam-se hoje à tarde, no Pacaembu, poucas horas depois de terem voltado de jogos pela Libertador­es no Peru e na Colômbia, respectiva­mente. Um desgaste que dirigentes não notaram na época da divulgação das tabelas. De novo, jogadores e técnicos pagarão o pato.

A contusão de Neymar no pé serve para aumentar a dramaticid­ade da Copa

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