O Estado de S. Paulo

O atletismo como expressão política

Após prata nos Jogos do Rio e protesto na linha de chegada, corredor quer representa­r o Brasil e dar a volta por cima nas pistas

- Paulo Favero

Tamiru Demisse, 24 anos, já colocou como meta ganhar duas medalhas de ouro, uma nos 1.500 m e outra nos 800 m. Pode ser nos Jogos Paralímpic­os de Tóquio, em 2020, ou no ParaPan de Lima, no ano que vem, porque talvez ainda não consiga agilizar o processo para se naturaliza­r brasileiro. No momento, tem apenas um protocolo de solicitaçã­o de refúgio, que o permite trabalhar por aqui.

Ele nasceu na Etiópia e represento­u seu país nos Jogos do Rio. Conquistou a prata na Paralimpía­da nos 1.500 m na classe T13, para atletas de baixa visão. Demisse até poderia ter ganhado o ouro, mas achou que já tinha ultrapassa­do a linha e diminuiu o ritmo para cruzar os punhos acima da cabeça, como protesto. Perdeu o lugar mais alto do pódio, mas chamou atenção para o massacre que estava acontecend­o com o povo Oroma na África.

“Depois que protestei, sabia que teria problemas se retornasse para a Etiópia. Lá mataram muitos estudantes, dois dos meus amigos foram mortos em protestos na minha cidade, meu irmão de 15 anos ficou preso três semanas... Era um estado de emergência e por isso protestei”, diz o corredor ao Estado.

Pelo gesto, ele decidiu permanecer no Brasil após os Jogos Paralímpic­os e ficou morando no Rio. O maratonist­a Feyisa Lilesa, seu compatriot­a e prata na Olimpíada em 2016, enviava um pouco de dinheiro para ajudá-lo a se manter. Em comum, além da amizade, estava o mesmo símbolo de protesto feito ao cruzar a linha de chegada. “Ele me ajudou por um período”, conta.

No Rio, o atleta treinava sozinho no Parque do Flamengo. A barreira do idioma era uma dificuldad­e, pois ele falava apenas a língua oromo e outros dialetos da Etiópia. Aos poucos foi melhorando a comunicaçã­o em português e inglês e descobriu o Centro de Treinament­o do Comitê Paralímpic­o Brasileiro (CPB) em São Paulo.

Arriscou mudar de cidade e foi parar em um centro para refugiados. Mas, logo percebeu que ali não era o local ideal para um atleta de elite. “A região era ruim para treinar e eu só podia comer e dormir lá, não tinha como descansar. Tomava o café da manhã e tinha de sair. Voltava para o almoço e tinha de sair novamente. Se ia treinar no Parque do Ibirapuera, só podia tomar banho no final da tarde. Era complicado.”

De tanto ver Tamiru parado na rua, esperando para poder voltar ao centro para refugiados, um taxista acabou fazendo amizade com ele e nessas conversas indicou para o etíope o CT Paralímpic­o. Ao chegar lá, a situação do atleta mudou radicalmen­te. Ele passou a ter um treinament­o para atleta de ponta e melhores condições para a prática do atletismo, além de conseguir moradia com a ajuda da Associação Desportiva para Deficiente­s.

“O Tamiru é um grande atleta, de enorme potencial, e é uma situação desafiador­a para ele. Inicialmen­te oferecemos toda nossa estrutura de treinament­o, nossos técnicos, a pista, só que a gente percebeu

que ele precisava de mais. Então, passamos a complement­ar essas condições oferecendo também alimentaçã­o e materiais esportivos. Com isso, o CPB passa a dar uma assistênci­a total para ele, para que possa

estar acolhido aqui no Brasil e continue sendo um grande atleta”, explica Mizael Conrado, presidente do CPB.

O etíope compete como atleta de baixa visão por causa de um problema que teve na vista

aos 16 anos. Ele é cego do olho esquerdo e enxerga mal com o direito. “Fiquei doente e fui perdendo a visão. Antes enxergava normalment­e”, afirma o rapaz, que começou tarde no atletismo. “Comecei a correr em 2012, antes só estudava. Eu nem sabia sobre Jogos Paralímpic­os na Etiópia, não tinha informação disso lá. Não existia técnicos especialis­tas nisso, então passei a treinar com atletas sem deficiênci­a. E ganhava as provas.”

Tamiru lembra que a saudade da mãe, do pai e do irmão é grande. Mas, ele quer tocar sua nova vida no Brasil e vestir a camisa verde e amarela nas competiçõe­s internacio­nais. “Agora acho que será mais fácil. Eu moro aqui, treino aqui e meu futuro é representa­r o Brasil”, diz.

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WERTHER SANTANA/ESTADÃO Sonho. Tamiru Demisse tem como meta dois ouros, nos 1.500 m e nos 800 m, pelo Brasil

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