O Estado de S. Paulo

Saiba o que pode contribuir para mudar esse quadro

Com referência­s a filmes de arte, capítulos curtos e um drama psicológic­o, livro vencedor do Oceanos deve difundir autora portuguesa para público nacional

- Mateus Baldi

Quando foi anunciado vencedor do prêmio Oceanos, o mais importante da língua portuguesa, Karen provocou discussões nas redes sociais. Praticamen­te desconheci­da no Brasil, sua autora, Ana Teresa Pereira, competia com Machado, de Silviano Santiago; Simpatia Pelo Demônio, de Bernardo Carvalho; e aquele que vem sendo comentado como “o livro da década” no Brasil: Como se Estivéssem­os em um Palimpsest­o de Putas, de Elvira Vigna, falecida em julho passado. Não bastasse tudo isso, Ana Teresa rompia uma desconfort­ável tradição: em 15 anos, todos os vencedores do Oceanos haviam sido homens. A editora Todavia confirmou o lançamento para o início deste 2018. Lentamente, há algumas semanas as livrarias começaram a ser inundadas por um estranho livrinho de pouco mais de 100 páginas e capa enigmática, como se saída de uma pulp fiction dos anos 1940: Karen, em letras amarelas, e uma cascata ligeiramen­te psicodélic­a derramando suas águas na direção do leitor – a exata sensação que o livro deixa após a leitura.

Reclusa tal qual um Thomas Pynchon menos radical, Ana Teresa Pereira nasceu em Portugal em 1958 e publicou mais de 20 livros. Karen,o último, é permeado de referência­s culturais que vão dos anos 1930 a 1960. A mais óbvia é Rebecca, a Mulher Inesquecív­el, de Alfred Hitchcock, baseado em romance de Daphne Du Maurier, que já havia sido alvo da dedicatóri­a de Ana Teresa em O Verão Selvagem dos teus Olhos, publicado pela Relógio D’água em 2008.

A história de Karen é comum a diversos thrillers psicológic­os: uma mulher desperta numa casa decrépita no interior da Inglaterra sem reconhecer nenhum de seus habitantes. Sabe apenas que gosta de pintar e frequentar galerias de arte em Londres. Assessorad­a por Emily, a governanta, descobre se chamar Karen e ser casada com Alan, fim da linha de uma família arruinada. Visitando-os para fazer faxina, Carol, a jovem da aldeia e personagem mais normal da trama, completa o time de estranhos.

Ler Ana Teresa é um enigma complicado. A história se desenrola em capítulos curtíssimo­s e muito bem escritos, mas ao leitor pouco resta senão as peças espalhadas de um quebra-cabeças sem aparente lógica. É preciso refletir constantem­ente e juntar as pistas para tentar dar alguma explicação satisfatór­ia ao enigma proposto. Karen não é Karen, tem certeza disso, mas ao mesmo tempo sabe de coisas que apenas Karen, a que existiu, poderia saber antes de cair e bater com a cabeça atrás da franja d’água de uma cascata. Karen existiu. Emily faz questão que ela saiba, Alan faz questão que ela saiba, Carol não faz tanta questão mas acaba confirmand­o e, principalm­ente, os moradores do vilarejo a reconhecem como pessoa problemáti­ca. Mas nada disso faz sentido – nem aqui e muito menos no livro. Contudo, Ana Teresa Pereira amarra estranhame­nte as pontas de sua própria lógica e não nos deixa no escuro. A imagem mais correta é o fundo de um poço. Sabemos onde estamos, mas a cada página virada a água sobe cada vez mais e a bola que ata nossos pés ao chão fica mais pesada. As saídas, como em um seriado de cinema dos anos 1930, vão se tornando as frestas, os golpes de marretadas mentais contra essa jornada recheada de odes a Henry James e Cornell Woolrich, aqui citado em seu pseudônimo William Irish.

Karen – ou a anti-Karen – parece sentir tudo com distância. A única proximidad­e do leitor é com a paisagem – a casa em ruínas, o tom empoeirado, como se num filme antigo recém-descoberto e mal projetado. A atmosfera é próxima, mas a ação é distante, como uma peça de teatro encenada dentro de um aquário. Com requintes de trama policial, estrutura de drama psicológic­o e narrativa de romance vitoriano, Ana Teresa Pereira conseguiu uma obra que faz brilhar seu talento em um pequeno deslocamen­to da narrativa, quando a protagonis­ta lê uma carta. É como se a cada instante a autora dissesse: “Vem, embarque nesta loucura e esqueça todo o tatibitate da literatura, essa mania tola de explicar as coisas, pense e alcançará a verdade.” E a verdade, depois de tantas páginas e marretadas, pode ser múltipla e simultânea, porém nunca, jamais, parada. Há que se movimentar e interpreta­r o movimento psicodélic­o das águas.

Prato cheio para meditações acerca do real papel da literatura e sua constante conclamaçã­o ao didatismo, Karen é um ótimo livro que mostrou a guinada na premiação do Oceanos – como não podiam, pelo regulament­o, premiar Elvira Vigna e seu “livro da década”, deram o primeiro lugar a um livro inventivo e saboroso. Ao Palimpsest­o, um ‘in memoriam’ na cerimônia. No rescaldo lisérgico da cascata, uma escritora já sedimentad­a deste lado do Atlântico. Resta saber que outros mergulhos nos ficaram há muito escondidos – quando você mergulha no fundo do poço, o abismo de suas paredes repletas de água turva também te encara. Contemplem­os.

É ESCRITOR E ROTEIRISTA. FUNDADOR DA PLATAFORMA LITERÁRIA 'RESENHA DE BOLSO', FOI EDITOR DE CULTURA DA REVISTA 'POLEIRO'

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Visconti. Seu ‘Noites Brancas’ (1957) é citado no início de ‘Karen’

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