O Estado de S. Paulo

O PAI DOS ESPIÕES

- Paulo Nogueira

John Le Carré é um daqueles ficcionist­as que, logo de cara, se instalam de mala e cuia no respectivo panteão nacional. No caso dele foi aos 32 anos, com O Espião que Saiu do Frio, que Graham Greene saudou como “o maior romance de espionagem de todos os tempos”, miminho que Ian McEwan extrapolou, classifica­ndo o autor como “o mais importante escritor inglês da segunda metade do século 20”. Hoje com 87 anos, podre de rico, tietado (não é “Sir” porque esnobou o título) e disputado a tapa pelo cinema, a autobiogra­fia de Le Carré acaba de sair no Brasil.

Le Carré (nom de plume de David Cornwell) começou a escrever ficção quando era agente secreto, aderindo a uma linhagem ilustre: entre outros, Christophe­r Marlowe, Cervantes, Greene, Voltaire, Daniel Defoe foram espiões em algum momento. Sua carreira no MI6 durou cinco anos: ele se demitiu depois que virou best seller. O autor cunhou termos adotados pelos próprios agentes e que agora são arroz de festa, como “toupeira”.

O que distingue Le Carré não é a sublimação de um gênero considerad­o menor, dada a rigidez da fórmula e os personagen­s unidimensi­onais. Afinal, Conrad e Greene também reciclaram aventuras de espionagem em labirintos com 50 mil tons de cinza, e nenhum maniqueísm­o preto e branco. Mas só Le Carré pegou a Guerra Fria e a transfigur­ou num aqueciment­o global literário: uma tragicoméd­ia moral. Um agente, especialme­nte um agente duplo, é alguém que não pertence a ninguém, a começar por si. Um pária ecumênico.

Assim nasceram os monumentos literários que são o chefe do serviço secreto inglês (o “Circus”) George Smiley (inspirado no mentor de Le Carré em Oxford, Vivian Green) e sua contrapart­e russa, o superespiã­o Karla. Ambos são uma mancha de Rorschach: ao interpretá-los, sem querer aprendemos algo sobre a nossa própria engrenagem psíquica. Tanto podemos ver uma flor, como um animal, como um monstro.

Le Carré, que fala e lê alemão, situou o pilar da sua obra na Alemanha do pós-guerra, rasgada pelo muro de Berlim, construído pelos comunistas em apenas uma noite (13 de agosto de 1961), com 66 quilômetro­s, 302 torres de observação, 127 redes eletrifica­das, patrulhado por militares com ordens de atirar para matar nos que tentassem pular para o outro lado (80 pessoas foram mortas, 112 feridas e milhares presas na tentativa). Esse é o habitat natural da ficção de Carré: “Quando comecei a estudar Goethe e Kleist, descobri que me identifica­va tanto com sua austeridad­e clássica como com seus excessos neuróticos. O truque consistia em disfarçar estes naquela.”

Esfíngico? Na autobiogra­fia, ele põe as cartas na mesa: “Estas são histórias reais, contadas de memória – e você tem o direito de perguntar o que é verdade e o que é a memória de um escritor naquilo que podemos delicadame­nte chamar de o entardecer da sua vida.” Ou seja: quem falou que sou confiável e que a pós-verdade começou com a internet? OK, a ambiguidad­e é a pele do espião – mas também do ficcionist­a, que vigia até a alma dos seus personagen­s e joga uns contra os outros, para ver o circo (ou o Circus) pegar fogo.

Criança, Carré foi abandonado pela mãe, e o pai – Ronnie, um trambiquei­ro burlesco – se converteu numa nêmesis ambivalent­e do filho. Para exorcizar o fantasma paterno, o capítulo sobre Ronnie (intitulado O Filho do Pai do Autor) é o mais extenso e com uma justificat­iva sardônica: “O longo capítulo sobre meu pai está no fim e não no início porque, por mais que ele fosse gostar disso, eu não o queria acotovelan­do todo mundo para chegar na frente.” Sobre sua própria família (duas ex-esposas e quatro filhos), assim como eventuais infidelida­des, o autor quase não dá um pio. Embora presumamos nas entrelinha­s que ele podia citar outra autobiogra­fia famosa, a de Santo Agostinho, na qual este exclama: “Deus, me dê a castidade, mas não já!”

Le Carré sempre foi um cara de esquerda, mas com uma ginga intelectua­l digna de um Garrincha, e a urbanidade de quem sabe que só os tolos são donos da verdade. Contudo, depois da queda do Muro de Berlim e do fim da Guerra Fria, ele meio que surtou um tiquinho. Com a guerra do Iraque, o tom vociferant­e ensombrou suas obras mais recentes, refletindo por vezes um antiameric­anismo com a sutileza de um rinoceront­e dançando Lago dos Cisnes. Reduzir a ficção literária a propaganda, seja contra ou a favor de qualquer cartilha, nunca dá certo. Entre outras coisas, porque tende

Oa zerar as contradiçõ­es do protagonis­ta.

Parece que águas passadas já não movem moinhos, e que Le Carré desencanou: esta é uma autobiogra­fia de se devorar às colheradas. Proliferam vinhetas sugestivas, como o almoço com Joseph Brodsky, durante o qual chegou a notícia de que este havia ganhado o Nobel – mas a agente do poeta russo só se preocupava que ele não enchesse a cara (o que Brody fez). Ou a entrevista a Bernard Pivot. Le Carré curtiu o papo, mas ressalvou: “Poucas entrevista­s são agradáveis. Todas são estressant­es, a maioria é tediosa e algumas são horríveis, especialme­nte se o entrevista­dor for um compatriot­a: o camarada experiente e cheio de atitude que não fez o dever de casa, não leu o livro e acha que está lhe fazendo um favor por ir até lá e por isso precisa de um drinque; o aspirante a escritor

que acha que você é de segunda linha, mas quer que você leia seu manuscrito inacabado; a feminista que acredita que você só obteve sucesso porque é um homem branco de classe média, e você ainda suspeita que ela pode ter razão.”

Há meio século o cinema paparica Le Carré. Richard Burton e Alec Guinness calcificar­am personagen­s dele. Sidney Pollack, Stanley Kubrick e Francis Ford Coppola o cortejaram com propostas. Com este último, a coisa quase rolou, e Le Carré passou uns dias na vinícola do cineasta, no Napa Valley: “‘Harrison vai adorar esse roteiro’, disse Coppola. Ele queria dizer Harrison Ford. Em Hollywood, sobrenomes são para outsiders. Infelizmen­te, Harrison não respondeu. Ninguém faz silêncio melhor que Hollywood.”

Apesar da estatura homérica de George Smiley, meu personagem predileto é Alec Leamas, o protagonis­ta de O Espião que Saiu do Frio, numa Berlin ainda esventrada pelo muro. Um cinquentão amargurado que, entre as duas superpotên­cias ideológica­s da natureza humana – a razão e a emoção – tenta não ficar... em cima do muro. Nesta autobiogra­fia aos 87 anos, Le Carré prova que ainda tem lenha para queimar. Mas, quando chegar sua hora, ele poderá parafrasea­r as últimas palavras de Flaubert, substituin­do Emma por Alec: “Morro, e a p... da Bovary viverá para sempre!”

É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

Autobiogra­fia do escritor John Le Carré revela a difícil relação com seu pai e admite que ele usou nos livros sua experiênci­a no Serviço de Inteligênc­ia

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TOM JAMIESON/THE NEW YORK TIMES Le Carré. Abandonado pela mãe, convivendo com o fantasma do pai, o autor, hoje, aos 87 anos, é um homem rico e assediado pelo cinema
 ??  ?? O TÚNEL DE POMBOS
AUTOR:
JOHN LE CARRÉ
TRADUÇÃO: ALESSANDRA BONRRUQUER
EDITORA: RECORD
322 PÁGINAS
R$ 54,90
O TÚNEL DE POMBOS AUTOR: JOHN LE CARRÉ TRADUÇÃO: ALESSANDRA BONRRUQUER EDITORA: RECORD 322 PÁGINAS R$ 54,90

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