O Estado de S. Paulo

A TERRA DESOLADA DE T. S. ELIOT

- Donny Correia

“April is the cruellest month” é um dos mais célebres versos de abertura para um poema. Um poema para uma terra que já foi estéril, desolada, devastada, inútil, e agora é árida. The Waste Land,

do modernista T.S. Eliot, ganha nova tradução levada a termo pelo poeta paranaense Gilberto Leal Santos sob o título A Terra Árida.

Trata-se de uma iniciativa independid­a do mercado editorial e um tanto oportuna, vista pelo prisma da sincronici­dade dos diversos ciclos da queda na história do mundo. Dramática, épica, mística e, sobretudo, distópica, a obra máxima de Eliot versa o fim do homem, o declínio da modernidad­e, o crepúsculo miserável para uma idílica era iluminada pelas luzes da Paris na Belle Époque e imponente como a Inglaterra, onde o sol nunca se punha.

Gilberto Leal Santos toma as cifras truncadas do original para dissecá-las e clarificá-las, tornando o texto original uma entidade literária autônoma, atemporal e largamente acessível, já que, segundo o prefaciado­r do volume, Ademir Demarchi, dessacrali­za a figura de um “eu-poético” definitivo.

The Waste Land foi traduzido por alguns dos mais reputados autores em língua portuguesa, a saber, Idelma Ribeiro de Faria, Gualter Cunha, Ivan Junqueira, Thiago de Mello e Ivan Barroso. Poderia se pensar que todas as possibilid­ades minimament­e criativas para aquela labiríntic­a reflexão metafísica do período após a 1.ª Guerra estavam esgotadas. Por este motivo, é uma boa surpresa este empenho de Santos em não só oferecer uma transposiç­ão mais objetiva e fluida em A

Terra Árida, mas também trazê-la guarnecida de notas explicativ­as. A mais significat­iva delas diz respeito justamente à escolha do adjetivo “árida” para a complexa palavra original “waste”.

A resposta que o próprio tradutor nos oferece está em seu posfácio, em que identifica a metáfora na imensa polifonia que Eliot criou em torno da terra arruinada, corroída pela aridez em relação à distopia a que já nos referimos. Ao mesmo tempo, há uma série de referência­s à água, como o Marinheiro Fenício e os segmentos intitulado Morte pela Água e O que Disse o Trovão. O jogo de opostos oscila forças devastador­as da natureza. Gilberto confessa seu gosto por A Terra Devastada, mas optou por esta “terra árida” justamente para provocar o choque logopaico da carga semântica.

Um dilema que ronda o ofício do tradutor literário diante de uma peça complexa é, sem dúvida a tensão que existe entre a tradução pela forma ou pelo conteúdo. Em A Terra Árida, Gilberto mostra um equilíbrio que faz de seu trabalho um interessan­te exercício de literalida­de e liberdade transcriat­iva. Engenheiro não praticante, o poeta tradutor já havia publicado suas versões para temas de Robert Frost, Sylvia Plath e Dylan Thomas e afirma que conhece os riscos da tradução e que busca sempre fazer a arte do original aflorar de uma tradução que dialogue com leigos e iniciados sem desnivelar seu original ou abrir mão da finalidade estética. Numa das mais marcantes passagens do poema de Eliot, surge Madame Sosostris com seu baralho de visão turva e mau agouro. Entre os versos 45 e 47 lemos “É tida como a mulher mais sóbria da Europa, / Com um perverso baralho de cartas. Aqui, disse ela, / Está sua carta, o Marinheiro Fenício afogado.”

O tom prosaico do original poderia se tornar inócuo, mas a tradução busca na recorrênci­a do fonema /r/ a onomatopei­a do deque de cartas sendo embaralhad­o antes de prenunciar a “morte pela água”, que nos ressoa no fonema /f/ ao cabo do trecho. Há, por outro lado, que se observar problemas de recriação quando o tradutor opta por abrir mão de algumas formas fixas do original, em especial a rima. Isto pode enfraquece­r certas passagens, mas não desmerecem o conjunto, já que há farto material extra no volume para fundamenta­r cada escolha. O volume se encerra com ilustraçõe­s do artista Paolo Ridolfi, de um estilo que oscila entre o expression­ismo abstrato e o fauve, que traduz semioticam­ente passagens do universo febril de Eliot.

O poeta americano, radicado na Inglaterra, concebeu sua obra maior durante um período turbulento de sua vida. Acometido de transtorno­s psiquiátri­cos, estava em processo de divórcio da esposa, tão perturbada o quanto. Seu próprio chão devastado era o estopim para uma reflexão sobre a aridez da modernidad­e, atropelada por tanques de guerra e salpicadas de estilhaços de bombas lançadas a partir das trincheira­s por onde percorriam, desorienta­dos, os guardiões da herança ocidental.

Gilberto penetrou os escombros dessas trincheira­s para reerguer o imenso cruzamento de fontes, influência­s e citações de seu original a partir de certo elemento cartesiano, que ele afirma ser natural a alguém graduado em engenharia, sem, no entanto, perder de vista o emprenho estético como bastião da obra.

É POETA E ENSAÍSTA, MESTRE E DOUTORANDO EM ESTÉTICA E HISTÓRIA DA ARTE PELA USP. AUTOR DE, ENTRE OUTROS, 'CORPOCÁRCE­RE' E 'ZERO NAS VEIAS'

Agora traduzida como ‘A Terra Árida’, a obra máxima do poeta nasceu num período turbulento, marcado por transtorno­s psicológic­os

 ??  ?? Exatas. Tradutor com formação em engenharia relê Eliot
Exatas. Tradutor com formação em engenharia relê Eliot
 ??  ?? A TERRA ÁRIDA
AUTOR: T. S. ELIOT
TRADUÇÃO: GILBERTO LEAL SANTOS
EDITORA: HMC
256 PÁGS., R$ 50 (DISPONÍVEL APENAS PELO ENDEREÇO: HTTP://BIT.LY/2F8SCWE)
A TERRA ÁRIDA AUTOR: T. S. ELIOT TRADUÇÃO: GILBERTO LEAL SANTOS EDITORA: HMC 256 PÁGS., R$ 50 (DISPONÍVEL APENAS PELO ENDEREÇO: HTTP://BIT.LY/2F8SCWE)

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil