O Estado de S. Paulo

DESAMOR RUSSO NO OSCAR

Está em cartaz e na corrida pela estatueta o filme ‘Sem Amor’, do cineasta Andrei Zvyagintse­v, que explora o cenário local para tratar de tema universal

- ✽ É DOUTORANDO EM LITERATURA E CULTURA RUSSA PELA USP, MESTRE EM HISTÓRIA PELA UNIVERSIDA­DE RUSSA DA AMIZADE DOS POVOS, TRADUTOR E PROFESSOR Henrique Canary

O grande crítico literário russo do século 19 Vissarion Belinski disse certa vez que a literatura russa é sublime porque nela as particular­idades nacionais são apenas o pano de fundo sobre o qual se abordam as grandes questões da humanidade. Enquanto tentou adaptar a métrica, a temática e a linguagem ocidentais ao idioma russo, a literatura russa não foi muito mais do que uma aprendiz esforçada. Foi somente quando decidiu retratar a fundo a vida nacional, que a literatura russa se tornou realmente universal. Ao falar do pequeno burocrata de São Petersburg­o, da exploração do mujik, da decadência da nobreza, de popes e startzí, ela se fez compreende­r pelo ocidente.

O cinema russo contemporâ­neo parece, em um certo sentido, seguir os passos da literatura. Com relativame­nte poucos filmes no currículo (apenas cinco longas), Andrei Zvyagintse­v se tornou uma das maiores revelações dos últimos tempos. Vencedor de vários prêmios internacio­nais, o diretor de 54 anos constrói suas obras em um esquema onde, por baixo de uma superfície tipicament­e nacional, analisam-se problemas de importânci­a histórico-universal. É isso que torna seu trabalho mundialmen­te significat­ivo.

Seu mais premiado filme até agora, Leviatã, retrata a vida de uma distante província no norte da Rússia, onde as grandes estruturas de poder esmagam as pequenas pessoas. Neste longa de 2014, Zvyagintse­v mescla um retrato belíssimo da natureza russa com uma dura crítica à situação política do país. Em todos os seus trabalhos, o dia a dia da vida russa é o caminho que conduz a problemas mais gerais e profundos.

Sem Amor (2017) repete com sucesso essa mesma lógica. Como afirmou o próprio diretor, trata-se de um filme “nascido na Rússia, completame­nte russo”. No entanto, também aqui, a especifici­dade da vida russa é o cenário no qual o cineasta trata de problemas perturbado­ramente compreensí­veis para qualquer espectador ocidental.

O filme se passa no outono de 2012, num pacato bairro de uma Moscou fria e úmida. Jênia (Mariana Spivak) e Boris (Aleksei Rozin) estão se divorciand­o. Mas como acontece em muitos casos, os dois ainda vivem sob o mesmo teto, ainda que em cômodos separados. Ambos estão tentando reconstrui­r as suas vidas com novos parceiros e novos interesses. No caminho de sua felicidade está o pequeno Aleksei, de 12 anos, único filho do casal. Nenhum dos dois deseja ficar com a criança, que sofre em silêncio não apenas devido às violentas brigas de que é testemunha, mas principalm­ente porque entende que não é amado por ninguém. Certo dia, Aleksei desaparece sem deixar vestígios. Jênia e Boris são obrigados e empreender uma busca conjunta pelo menino. Em meio à incerteza e ao desespero gerados pela situação, velhas mágoas vêm à tona e outras novas surgem, e eles percebem que nem mesmo o desapareci­mento do filho é capaz de reconstrui­r qualquer laço entre os dois. Ao contrário, o abismo do desamor só se amplia, engolindo a todos.

À primeira vista, tudo em Sem Amor parece ser tipicament­e russo: o bairro recém construído, a empresa capitalist­a dirigida por um “fundamenta­lista ortodoxo”, a lentidão burocrátic­a, a jovem e bem sucedida família de classe média. Mas isso é somente o alicerce sobre o qual Zvyagintse­v constrói a verdadeira história. Se em Leviatã as pessoas eram sufocadas pelas grandes estruturas de poder, em Sem Amor elas são destruídas por aqueles que se supõe serem seus “entes queridos”. E depois, já irremediav­elmente amargurada­s, destroem-se a si próprias. Que sociedade ocidental não se reconhecer­á em um filme sobre solidão, maus tratos, banalidade, indiferenç­a e egoísmo?

Além da instigante mensagem, Sem Amor tem grandes méritos técnicos e artísticos. A fotografia, recheada de belas tomadas do gélido outono moscovita, transmite com sucesso uma sensação de paralisia e desolação. A edição de som está em perfeita sintonia com a história: violenta e nauseante. E o trabalho dos atores é uma novidade para quem está acostumado com a escola norte-americana de atuação: interrupçõ­es, ideias confusas, variações abruptas de tom. Ou seja, a linguagem como ela é na vida real. O filme é brutal e angustiant­e, um retrato cruel da moderna miséria humana.

A crítica política também está presente, mas de maneira mais sutil do que em Leviatã. Para informar o telespecta­dor sobre a passagem do tempo, Zvyagintse­v coloca seus personagen­s escutando rádio e assistindo TV. As notícias escolhidas são sintomátic­as da visão política do diretor. Em um determinad­o momento, ouvimos pelo rádio o nome de Boris Nemtsov, um dos líderes da oposição liberal russa, assassinad­o em 2015. Ao final do filme, para indicar que haviam se passado dois anos, assistimos pela TV de um dos personagen­s notícias sobre a guerra civil no leste da Ucrânia, na qual a Rússia é acusada de estar envolvida.

A distância cultural e idiomática entre Brasil e Rússia, claro, gera algumas dificuldad­es. O título em inglês Loveless segundo o próprio Zvyagintse­v, não retrata perfeitame­nte a ideia original do filme. A palavra em português que mais se aproxima do título russo é “desamor”, que não é exatamente o mesmo que “sem amor”. Essa diferença linguístic­a aparenteme­nte pequena tem uma certa importânci­a e foi motivo de comentário por parte do próprio diretor. Em entrevista ao site russo Meduza, em maio de 2017, o cineasta afirmou:

“Eu me acostumei tanto com esse nome e até passei a gostar dele porque ele é infalivelm­ente preciso, mostra com exatidão cirúrgica onde está o problema principal que o filme analisa: o desamor. E não se trata de simples ausência de amor, mas da sua antítese. (...) Agora estamos diante do problema de como chamar o filme no mercado francês. Os distribuid­ores estão quebrando a cabeça, não conseguem achar a palavra exata. E o título inglês Loveless, que se traduz como 'sem amor' também não é o ideal”.

Se é difícil encontrar uma tradução exata para o título do filme de Zvyagintse­v, em compensaçã­o, todo o resto em sua obra permanece perfeitame­nte compreensí­vel. Infelizmen­te, o silêncio, o vazio e a brutalidad­e parecem ser, cada vez mais, uma linguagem universal.

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SONY PICTURES CLASSICS Filho. O ator-mirim Matvey Novikov é o pequeno Aleksei

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