O Estado de S. Paulo

Um chamado à razão

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Opresident­e Michel Temer teve de recordar, em entrevista, que as Forças Armadas “só são chamadas quando eu as convoco” e que “não há um desejo sequer das Forças Armadas em assumir o poder”.

Há quem esteja vendo no protagonis­mo do Exército na intervençã­o federal no Rio de Janeiro alguma semelhança com a época do regime militar. A tal ponto chegou essa ilação que o presidente Michel Temer teve de recordar, em entrevista à rádio Jovem Pan, que as Forças Armadas “só são chamadas quando eu as convoco” e que “não há um desejo sequer das Forças Armadas em assumir o poder”.

O chamado do presidente à razão é necessário, pois tem prosperado com inusitada facilidade o discurso segundo o qual está havendo uma “militariza­ção da política”, como resultado de um alardeado envolvimen­to crescente dos militares em assuntos civis. Nesse contexto, a palavra “ditadura” surge com incomum naturalida­de, como se a presença de um general na administra­ção da segurança pública do Rio de Janeiro, em caráter extraordin­ário e temporário, fosse o sintoma mais vistoso da entrega do poder às Forças Armadas.

Para os que se dizem preocupado­s com esse suposto retrocesso, qualquer acontecime­nto, impressão ou rumor, por mais banal que seja, se torna prova de que estamos a meio caminho do restabelec­imento do regime de exceção encerrado em 1985. Tome-se o exemplo da entrevista coletiva do general Walter Braga Netto, intervento­r na segurança pública do Rio de Janeiro nomeado pelo presidente Temer. Bastou que o oficial fizesse diversas exigências aos jornalista­s para responder às perguntas para que logo circulasse­m comentário­s sobre o espírito autoritári­o que estaria a mover o intervento­r. É certo que a entrevista poderia ter transcorri­do de outra forma, menos rígida, pois afinal os jornalista­s lá estavam para cumprir a função de levar informaçõe­s ao público, mas daí a sugerir que a atitude do general Braga Netto aludia aos tempos da ditadura, como muitos comentaris­tas fizeram, vai uma distância colossal.

O mesmo se deu quando os militares fotografar­am moradores de algumas favelas do Rio, como parte do esforço para identifica­r criminosos. A medida está em consonânci­a com o decreto presidenci­al de 28 de julho de 2017 que autoriza o emprego das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem no Rio de Janeiro. Além disso, a prática de fotografar moradores de favelas para procurar pessoas com mandado de prisão tem respaldo do Ministério Público do Rio de Janeiro, de acordo com o Comando Militar do Leste. Para quem busca sinais de uma ditadura em construção, contudo, o procedimen­to dos militares, estampado em fotos nos jornais, rapidament­e se transformo­u em “fichamento” – embora ninguém tenha sido fichado – e serviu como evidência de “violação de direitos humanos” que só pode ser praticada em um regime de exceção. “Isso remonta a práticas antigas, da ditadura”, reclamou um representa­nte da Defensoria Pública do Estado do Rio.

Os exageros são evidentes, mas vivemos numa época em que os exageros têm primazia em relação aos fatos. E os fatos são apenas estes: os militares não saem dos quartéis senão por ordem do presidente da República, que é civil, e a atuação das Forças Armadas na segurança pública do Rio de Janeiro, até este momento, está inteiramen­te respaldada pela legislação.

Convém lembrar que, se dependesse do Comando do Exército, os soldados não participar­iam de operações de segurança pública, para as quais não receberam treinament­o e cujo potencial de desgaste para a instituiçã­o militar não é desprezíve­l. Mais de uma vez, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, se queixou da constante convocação dos militares para esse tipo de missão, sem que os resultados compensass­em os riscos e o esforço.

A tese de que o País está a testemunha­r a volta da ditadura militar em câmera lenta, com a anuência ou mesmo cumplicida­de do presidente da República, não deveria prosperar nem mesmo em assembleia­s estudantis e em reuniões de militantes partidário­s que veem golpistas em todo canto. Infelizmen­te, contudo, é em momentos conturbado­s como o atual que a histeria consegue se impor onde deveria prevalecer a razão.

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