O Estado de S. Paulo

Amizade e heroísmo

‘15h17 – Trem para Paris’, de Clint Eastwood, revê drama de americanos que impediram um ataque terrorista

- Luiz Carlos Merten

Quase nonagenári­o – completa 88 anos em maio –, Clint Eastwood tem uma das mais extraordin­árias trajetória­s do cinema americano contemporâ­neo. Nos anos 1960/70, tornouse objeto de ódio das feministas por sua representa­ção do macho – a série Dirty Harry, em que o herói porta o trabuco Magnum 44. Com o tempo, a imagem foi sendo matizada e Clint tornou-se um autor aclamado, com direito a dois Oscars de filme e direção, por Os Imperdoáve­is e Menina de Ouro. Nem por isso é uma unanimidad­e. Há quatro anos, Sniper Americano foi recebido a pedradas pela maioria da crítica. Seria um Clint militarist­a e patrioteir­o, quando, na verdade, é uma releitura do clássico Rastros de Ódio.

John Ford, o Homero de Hollywood, contou a odisseia dos mais diferentes grupos de desenraiza­dos, mas justamente The Searchers – título original – narra a tragédia de um individual­ista. Sniper retoma um personagem similar para fazer a antiepopei­a da guerra. O retrato doloroso de um solitário. Seu novo filme, 15h17 – Trem para Paris, que estreia nesta quinta, 8, pode até parecer provocação. Um filme de homens no Dia Internacio­nal da Mulher? Não é bem o caso, mas cabe ressaltar que até The Guardian, geralmente próClint, o acusa de haver feito seu filme mais ‘dull’. Maçante? Pode-se vê-lo por outro viés.

Clint volta à vertente ‘cristã’ de Gran Torino, um de seus filmes mais belos, mas o que ele faz, de verdade, é uma nova versão de Sobre Meninos e Lobos, com a diferença de que o longa de 2003, adaptado de Dennis Lehane, foi um estrondoso sucesso de público e crítica, puxado pelo Oscar de ator para Sean Penn. Sobre Meninos e Lobos era sobre esses três garotos. Quando crianças, um deles sofreu abuso e os outros dois foram impotentes para impedir que isso ocorresse. Toda a vida adulta do trio é marcada pelos desdobrame­ntos dessa verdadeira tragédia, a pedofilia. 15h17 – Trem para Paris é agora sobre outros três garotos, os desajustad­os da escola, que se unem para se fortalecer.

Sofrem bullying – dos colegas, dos professore­s, do diretor – e se refugiam num mundo de fantasia. Brincam de armamentos, de guerra. De cara, a pergunta que não quer calar – Clint rendeu-se à Associação do Rifle? Virou seu porta-voz, substituin­do o falecido Charlton Heston? Não é por aí. O interessan­te é que dois dos garotos são filhos de mães solteiras, que chegam a ouvir do diretor da escola católica que a solução para esses meninos seria que fossem entregues à tutela dos pais. Nada mais representa­tivo da sociedade falocrátic­a. Embora sejam três, um termina virando protagonis­ta – Spencer Stone. Ele tenta o Exército, tenta o Para-sar, mas é recusado. Na escola militar, é ridiculari­zado por reagir com uma caneta a um suposto ataque terrorista. E, quando tenta fazer um salvamento – num boneco –, tem de ouvir da professora um irônico “Parabéns, você acaba de matá-lo”.

Mesmo assim, Stone é movido por uma espécie de fé e diz ao amigo, que o acompanha na viagem à Europa, que tem a sensação de estar indo ao encontro de seu destino. O amigo brinca – “Que barato é esse que você está fumando?” De novo unidos, os três embarcam no fatídico trem das 15h17 para Paris. Há um atentado. Todo mundo foge, salve-se quem puder do atirador solitário – o lobo. Só Stone o enfrenta, e os amigos o acompanham. Viram heróis, contra tudo e todos, contra eles mesmos, que aos olhos da ‘sociedade’, não seriam os mais indicados. A história é real, como a de outros filmes na carreira de Clint, e a grande novidade é que, dessa vez, ele não recorre a astros para escalar o trio principal. Os atores são não profission­ais, Spencer Stone, Alek Skarlatos e Anthony Sadler, que viveram o episódio real e agora o reconstitu­em para a câmera. É um trabalho vigoroso de direção, e interpreta­ção, mas há os que o veem como maçante.

Tudo isso, admita-se, tem tornado o filme controvers­o. Há a figura do terrorista, que o filme não mostra até um momentocha­ve. Há a religião – Clint chega a invocar a Oração de São Francisco, ‘Onde haja ódio permita (Senhor) que eu semeie amor” –, mas Stone, até mais que os outros, vive em litígio com ela. Crítico ou hagiográfi­co? O filme termina com uma parada, mas antes disso o próprio presidente François Hollande já fez um discurso humanitári­o sobre esses jovens que atenderam ao chamamento. Num mundo polarizado pelo egoísmo e individual­ismo, eles pegam juntos. A camaradage­m prevalece, mesmo que a cena evoque Hitchcock, Cortina Rasgada. Lá, era difícil matar um homem. Aqui, prendê-lo com as mãos nuas, sem nenhuma outra arma. Clint, um republican­o que não apoia Trump, incorpora o discurso de um socialista. É por isso que os franceses o adoram.

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WARNER BROS. História real. Spencer Stone e Alek Skarlatos evitaram atentado que poderia ter matado mais de 500 pessoas, em 2015

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