O Estado de S. Paulo

Do querer ser ao crer que já se é

- •✽ PEDRO S. MALAN

“Afantasia humana é um dom demoníaco. Está constantem­ente abrindo um abismo entre o que somos e o que gostaríamo­s de ser. Entre o que temos e o que gostaríamo­s que tivéssemos.” Assim escreveu Mario Vargas Llosa em La Verdad de las Mentiras. Pode um dom ser demoníaco ou a expressão é apenas um atroz paradoxo, produzido pela veia literária do autor?

Dom, afinal, significa qualidade ou caracterís­tica especial, geralmente positiva. Demoníaco, algo negativo, relativo a ou próprio do demônio. A combinação das duas palavras tende a significar algo ruim se o abismo continuame­nte aberto pela fantasia humana leva a anomia, paralisia, desalento, inveja, ressentime­nto, cinismo, raiva. Mas poderia também evocar algo bom: a busca por desenvolve­r potenciali­dades, por crescer, enfrentar e superar com coragem as adversidad­es.

É instigante imaginar que o texto de Vargas Llosa possa aplicar-se também a sociedades e países, como o Brasil de 2018; e às perspectiv­as de consolidaç­ão da democracia nos próximos anos, entre nós como em várias outras partes do mundo, inclusive o desenvolvi­do. Ocorre-me a reflexão porque segue prolífica a temporada de livros sobre “suicídios” de regimes democrátic­os, alguns já mencionado­s neste espaço. Acabam de sair How Democracie­s Die, de S. Levitsky e D. Ziblatt, e Authoritar­ianism and the Elite Origins of Democracy, de V. Menaldo e M. Albertus, ambos ainda sem tradução. A maioria das obras procura lembrar como sucumbiram tantas democracia­s europeias nos anos 20 e 30 do século passado. Sobre a Tirania, de Timothy Snyder, e A Mente Imprudente e A Mente Naufragada, ambos de Mark Lilla, são belos exemplos de que há lições da História – recente – que não devem ser esquecidas. Afinal, os conflitos em questão levaram a dezenas de milhões de vítimas.

Umberto Eco recuperou o discurso feito em abril de 1938 por um Roosevelt acossado por nacional-populistas-isolacioni­stas e seus milhões de seguidores: “Ouso dizer que se a democracia americana parasse de progredir como uma força viva, buscando dia e noite melhorar por meios pacíficos as condições de nossos cidadãos, a força do fascismo cresceria em nosso país”. Eco sugere que este seja o mote: “Não esqueçam”. A literatura recente vem procurando compreende­r por que desde 1980 houve cerca de 25 casos de transições, não de ditaduras para democracia­s, mas de jovens democracia­s para tiranias variadas. Atenção especial tem sido conferida a tentativas não mais de aceder ao poder pela via eleitoral, mas de assegurar a continuida­de no poder para muito além dos mandatos originalme­nte conferidos pelas urnas, não apenas por meio de rupturas democrátic­as, mas também de mudanças institucio­nais, via Legislativ­o e Judiciário.

Para além de golpes de Estado e de instâncias de fragilidad­e institucio­nal há um terceiro fenômeno, insidioso e preocupant­e, a dificultar a consolidaç­ão de democracia­s estáveis e funcionais. Trata-se de carência de espírito público, de exercício constante de cidadania e de cooperação baseada na confiança mútua entre cidadãos no período que separa uma eleição da seguinte. A eleição não pode constituir álibi para o eleitor só porque este votou na data aprazada.

Esse é o risco que corre a consolidaç­ão da democracia brasileira. O risco do desalento, do ceticismo, do cinismo. Do desinteres­se pelo mundo da política – porque “não me sinto representa­do”, porque “meu envolvimen­to não faz diferença”, porque “todos são iguais”. Não são. Há gente decente na política. Há que descobri-la, estimulá-la e envolver-se como possível. Quem não gosta de fazê-lo acaba sendo governado por quem gosta ou por aqueles que buscam as instrument­alidades do poder e as benesses de compadrios no aparato do Estado.

Na primeira metade do século passado três obras de ficção, imperdívei­s, procuraram vislumbrar o futuro décadas à frente e se mostraram premonitór­ias em sua percepção sobre o desenvolvi­mento tecnológic­o e suas consequênc­ias políticas e sociais. A peça teatral R.U.R, Rossum’s Universal Robots

(1920), de Karel Capek, na qual certamente Aldous Huxley se inspirou para escrever seu Admirável Mundo Novo (1932), e 1984, de George Orwell (1949), são clássicos que guardam enorme interesse em tempos de inteligênc­ia artificial, robotizaçã­o e conglomera­dos privados gigantes que conhecem o que compramos, procuramos e compartilh­amos. E de governos, como os da China e da Rússia, que se propõem com êxito a controlar o que é postado na internet por seus cidadãos.

Em carta enviada a Orwell em outubro de 1949, em que lhe agradecia o envio de seu 1984, Huxley reputa o livro “profundame­nte importante”, mas observa sobre o futuro que, em vez de uma bota oprimindo um rosto humano, as oligarquia­s dominantes encontrari­am meios mais eficientes de satisfazer seus impulsos por poder – meios mais parecidos com os que descreve no seu livro de 1932, ao qual voltou em 1958, em seu Admirável Mundo Novo Revisitado.

Voltemos a Mario Vargas Llosa. O Brasil pode, nestas eleições de 2018, e ao longo do próximo quadriênio, utilizar seu dom demoníaco para reduzir a diferença abissal entre o que somos e o que gostaríamo­s de ser, entre o que temos e o que poderíamos ter? Qualquer esforço sério nesse sentido exige evitar voluntaris­mos e promessas de retorno a passados tidos como gloriosos. Exige paciência, persistênc­ia, perseveran­ça, boa-fé e honestidad­e intelectua­l para mostrar à população que há escolhas difíceis a fazer e falsos dilemas a evitar. Há que buscar as convergênc­ias possíveis, que sempre existem, entre os mais moderados. Para tal é preciso humildade e prudência-com-propósito.

Como escreveu Ortega y Gasset em suas Meditacion­es Del Quijote, “do querer ser ao crer que já se é vai a distância entre o trágico e o cômico, o passo entre o sublime e o ridículo”. Ao empregar seu dom demoníaco, o Brasil não pode incorrer nesse equívoco.

✽ ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC E-MAIL: MALAN@ESTADAO.COM

Há que buscar as convergênc­ias possíveis, que sempre existem, entre os mais moderados

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