O Estado de S. Paulo

Truculênci­a de Trump é só uma das ameaças

- •✽ ROLF KUNTZ

Atruculênc­ia do presidente Donald Trump, exibida mais uma vez com a ameaça de uma guerra comercial, será vitoriosa se muitos governos buscarem a redução de danos por meio de acertos bilaterais. Se isso ocorrer, o governo de uma potência, os Estados Unidos, conseguirá atropelar facilmente a ordem multilater­al. Dois parceiros, Canadá e México, ficaram logo isentos das novas tarifas sobre importaçõe­s de aço e de alumínio. O gesto amigável é parte da renegociaç­ão do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta). Essa renegociaç­ão é um dos itens mais vistosos da agenda proposta desde a campanha eleitoral pelo atual presidente americano.

Outros países poderão ser isentos, disse na sexta-feira o secretário do Tesouro, Steven Mnuchin. O governo brasileiro já manifestou preferênci­a “pela via do diálogo e da parceria”. É uma atitude prudente e moderada, à primeira vista, mas perigosa para o sistema. Será o diálogo um bom substituto para a legalidade internacio­nal – mesmo para uma legalidade ainda incompleta e menos eficaz que a ordem vigente num Estado?

O presidente Trump confirmou o novo lance protecioni­sta na quinta-feira à tarde. Pouco depois apareceu a resposta brasileira, em nota assinada por dois ministros, o de Relações Exteriores, Aloysio Nunes, e o de Indústria e Comércio Exterior, Marcos Jorge. A nota mistura vários assuntos e diferentes níveis de relações entre os países.

O Brasil, segundo o texto, exporta para os Estados Unidos principalm­ente produtos semiacabad­os de aço, usados como insumos pela indústria americana. Ao mesmo tempo, os brasileiro­s são os maiores importador­es de carvão siderúrgic­o dos Estados Unidos. Para que compromete­r um comércio vantajoso para os dois lados? Em seguida, há uma referência ao esforço internacio­nal para eliminar o excesso de capacidade do setor siderúrgic­o. Vale a pena minar esse trabalho?

Em terceiro lugar – e só então – aparece uma referência a regras internacio­nais: as novas medidas protecioni­stas são contrárias às normas da Organizaçã­o Mundial do Comércio (OMC) e injustific­áveis pelas exceções de segurança previstas no sistema (Trump falou em segurança nacional para justificar as tarifas).

Na parte final surge a grande e confusa salada de soluções possíveis e de critérios: “Ao mesmo tempo em que manifesta preferênci­a pela via do diálogo e da parceria, o Brasil reafirma que recorrerá a todas as ações necessária­s, nos âmbitos bilateral e multilater­al, para preservar seus direitos e interesses”. Em outras palavras: se falhar o diálogo, o Brasil vai reclamar o cumpriment­o da regra internacio­nal, além de possivelme­nte retaliar. E se o diálogo funcionar e as exportaçõe­s brasileira­s ficarem isentas de sobretaxas? Nesse caso, danem-se as normas internacio­nais e a OMC?

Se a isenção valer para alguns países, a ordem multilater­al ainda será violada. Isso ocorrerá enquanto as tarifas forem mantidas arbitraria­mente para qualquer parceiro. A violação será evidente pelo menos por causa da justificat­iva baseada na segurança nacional. Qualquer parte prejudicad­a poderá recorrer ao Órgão de Solução de Controvérs­ias da OMC com boa chance de vencer. Outros países poderão associar-se como terceiros interessad­os no processo, mas farão isso se tiverem acertado com o governo americano uma solução para seus problemas?

Além disso, a ação por intermédio da OMC normalment­e segue três etapas. Há uma tentativa inicial de entendimen­to. Se falhar, abre-se o processo. Encerrada essa etapa, o lado perdedor pode recorrer e mais tempo será consumido, mesmo quando a decisão final é facilmente previsível. Confirmada a condenação, a parte vencida pode ainda recusar a ordem de interrompe­r o procedimen­to ilegal.

Nesse caso, o país vencedor é autorizado a retaliar. Dada a autorizaçã­o, impor um prejuízo comercial a um parceiro tornase um ato legal, assim como qualquer castigo determinad­o por um tribunal. Mas há uma diferença enorme entre as duas situações e essa é uma das deficiênci­as do sistema de normas internacio­nais.

Na ordem estatal, a pena imposta por um tribunal é aplicada por meio da força da instituiçã­o pública. O confronto, nesse momento, é entre um réu condenado e o poder organizado da sociedade política. No caso da retaliação autorizada pela OMC, o confronto é entre componente­s soberanos do sistema internacio­nal.

A retaliação nem sempre se concretiza. Em muitos casos é substituíd­a por um acerto mais confortáve­l para os dois lados e menos perigoso para o mais fraco. O desdobrame­nto da história será ainda mais incerto se a parte condenada for um país governado por Donald Trump. Ele sempre mostrou desprezo pela OMC e, de modo mais amplo, por qualquer sistema multilater­al de normas.

Ao disparar o primeiro tiro, Trump confirmou sua disposição de enfrentar uma guerra comercial. Pior para o sistema. Ao admitir isenções para alguns parceiros, como o México e o Canadá, continuou afirmando uma posição de força. Isenções serão concessões ditadas de acordo com os interesses definidos na Casa Branca. Quem escolher o entendimen­to bilateral, em busca desse benefício, admitirá a superiorid­ade da parte mais truculenta. Além disso, de alguma forma legitimará o ato inicial de guerra. A alternativ­a legalista, o recurso à OMC, poderá dar em nada se Trump estiver disposto a negar ainda mais abertament­e a ordem multilater­al.

Com todas as suas imperfeiçõ­es e deficiênci­as, essa ordem tem, no entanto, funcionado com algum sucesso. Mas é preciso fortalecê-la e aumentar a eficácia de suas decisões. Neste momento os prognóstic­os apontam para a direção oposta. A resistênci­a de Trump a uma ordem global civilizada é só uma das ameaças. Outra, igualmente consideráv­el, é a disposição de alguns governos de resolver o problema por entendimen­to bilateral e dar o resto por esquecido.

Acertos bilaterais para escapar das tarifas dos EUA também minam a ordem multilater­al

✽ JORNALISTA

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