O Estado de S. Paulo

Eleição colombiana

A ex-guerrilhei­ra que largou fuzis para pedir votos.

- Fernanda Simas

“Quando alguém ingressava na guerrilha, ninguém dizia para você matar. Não éramos um grupo de mercenário­s ou assassinos, mas quando há um confronto com armas, você tem de disparar ou disparam contra você. Você está na guerra e precisa assumir isso”

Victoria Sandino EX-GUERRILHEI­RA DAS FARC E CANDIDATA AO SENADO

Quando Judith Simanca Herrera resolveu se unir às Forças Armadas Revolucion­árias da Colômbia (Farc), em 1993, sua motivação era corrigir injustiças. Agora, 24 anos depois, a ex-guerrilhei­ra é candidata ao Senado e pretende levar ao Congresso reivindica­ções como reforma rural e política, metas do grupo ao longo de 52 anos de uma luta armada que deixou mais de 200 mil mortos, 45 mil desapareci­dos e 6 milhões de deslocados.

Como garantia do acordo de paz, assinado em 2016, o partido Força Alternativ­a Revolucion­ária do Comum (Farc) terá 10 cadeiras garantidas no Congresso – 5 no Senado e 5 na Câmara – nesta eleição e na próxima. Os 23 candidatos a senador e os 13 a deputado do grupo, portanto, estarão na lista de votação de hoje. Mesmo sem votos suficiente­s, 10 estarão no Congresso.

Esta colombiana de 56 anos, conhecida desde os 32 anos como Victoria Sandino, decidiu manter o nome de guerra ao ingressar na política em razão da identifica­ção com o público simpatizan­te da guerrilha. Um dos principais desafios de Victoria é superar a imagem negativa do grupo com boa parte da população. Sua meta é ampliar direitos das mulheres.

Segundo Victoria, a mulher na guerrilha conquistou papéis importante­s e possuía até mais direitos do que fora do grupo. “Quando as Farc foram fundadas, em 1964, as mulheres eram encarregad­as de preparar as refeições, atender aos doentes e feridos, lavar e costurar a roupa. Elas não eram chamadas de

guerrilhei­ras e sim companheir­as, porque chegavam como mulheres dos guerrilhei­ros. Nos anos 70, isso muda e as que chegam são combatente­s. Depois de 1983, se ganha o direito de planejar a gravidez e ao aborto.”

Victoria optou por não ser mãe porque considera que “a guerra e a maternidad­e não são compatívei­s”, mas lembra que o planejamen­to da gravidez era um direito reivindica­do por aquelas que optavam em conciliar as funções. “O principal desafio quando cheguei (à guerrilha) foi me acostumar com as caminhadas, carregando grandes cargas, com as armas e o equipament­o. Cheguei e fui levada para a frente de Teófilo, de confronto. Obviamente, se deram conta de que meu estado físico não era o melhor. Eu era jornalista, então me mandaram para outra unidade, a de Raúl Reyes, onde eu dava aulas de comunicaçã­o. Depois fui para a unidade de Alfonso Cano, onde dava orientação política, alfabetiza­ção.”

Victoria lembra que se aproximou do secretaria­do do grupo e participou da mesa de negociaçõe­s de paz em Havana depois da trajetória na guerrilha.

Contexto. Durante os atos de campanha da Farc em cidades colombiana­s, os agora líderes políticos foram criticados pela violência utilizada pelo grupo. Uma das principais condenaçõe­s se refere ao recrutamen­to de menores. “Mesmo para o recrutamen­to, existiam normas. Só era possível recrutar a partir de 15 anos, até porque os jovens de 15 anos aqui eram muitas vezes adultos, muitos estavam casados, com famílias. A realidade rural é outra”, afirma Victoria, defendendo a prática e ressaltand­o que os menores de 15 anos que se juntavam à guerrilha estavam ali por falta de opção.

“Havia violência e abandono dos filhos. A ação dos paramilita­res exterminou famílias inteiras, deixando algumas crianças sozinhas sem outra opção que não recorrer à dissidênci­a. Elas estavam aqui não como guerrilhei­ras, mas como protegidas”, alega. As Farc sequestrar­am crianças e chegaram a usar menores com explosivos em atentados.

A rotina de Victoria e dos cerca de 6 mil guerrilhei­ros que ainda integravam as Farc em 2016 só mudou após a assinatura do acordo de paz. Durante os quatro anos de negociação, a tensão continuava presente. “Não havia cessar-fogo bilateral, então as medidas de proteção e cuidados ainda precisavam valer”, explica Victoria. “Quando alguém ingressava na guerrilha, ninguém dizia para você matar. Não éramos um grupo de mercenário­s ou assassinos, mas quando há um confronto com armas, você tem de disparar ou disparam contra você.”

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FELIPE CAICEDO / REUTERS Desafio. Simpatizan­tes da Farc participam do último comício antes das primeiras eleições do ex-grupo guerrilhei­ro
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FOTOS: VICTORIA SANDINO Antes. Caminhadas longas com a carga era um dos desafios de Victoria na guerrilha
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Depois. Comunicado­ra mantém nome de guerra e uso do turbante na vida política

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