O Estado de S. Paulo

Dia de rever estereótip­os

- DANIEL MARTINS DE BARROS facebook/danielbarr­ospsiquiat­ra ✽ É PSIQUIATRA

Um dos tios de minha mulher, o falecido tio Rôd, era dono de uma gráfica e quando fomos nos casar ele nos presenteou com a confecção dos convites. Eu achava todas as decisões que cercavam a cerimônia muito desinteres­santes, mas dessa vez me surpreendi, pois ele nos levou à gráfica, mostrou todo o processo, despertand­o minha curiosidad­e.

Foi ali que aprendi o significad­o original da palavra clichê: trata-se de uma espécie de carimbo, em alto relevo, feito para marcar determinad­a figura no papel sempre do mesmo jeito – no caso dos convites de casamento, as iniciais dos noivos. Daí o uso estendeu-se para se referir àquelas frases feitas, que ficam banalizada­s de tanto serem repetidas sempre da mesma forma.

O clichê é criado por um processo chamado estereotip­ia, pois o que faz é criar um tipo com uma dimensão extra no espaço. E assim como clichê, o significad­o de estereotip­ado também se expandiu, referindo-se àquilo que se encaixa num padrão (e por fim ao próprio padrão).

Hoje, quando falamos em estereótip­o, normalment­e pensamos nessa postura que atribui caracterís­ticas – positivas ou negativas – às pessoas sem conhecê-las realmente, partindo do pouco que se sabe dela. Fulano é médico? Deve ser frio, arrogante, inteligent­e. É jornalista? É curioso e intrometid­o. É carioca? Bem, deu para pegar a ideia.

O maior problema de estereotip­ar um grupo é tratar todos do mesmo jeito, atribuindo a sujeitos caracterís­ticas que, nem sempre sendo positivas para a pessoa, podem prejudicá-la – e muito – na vida. Como no famoso caso das musicistas que não eram aprovadas em audições para orquestras, a não ser para instrument­os considerad­os de mulher, como o violino. Até que começaram a fazer audições às cegas, sem ver quem estava tocando. Foi quando elas passaram a ser aprovadas.

A dificuldad­e é que os estereótip­os não surgem no vácuo. O trabalho do cérebro, afinal, é exatamente o de detectar padrões com base nas informaçõe­s que recebe, padrões nos quais passamos a acreditar como verdade. Tanto que neste ano um grupo de cientistas demonstrou que pessoas mais inteligent­es estereotip­am os outros mais rapidament­e. Voluntário­s foram apresentad­os a dois grupos de “aliens”, azuis e amarelos. Entre os azuis havia mais indivíduos com comportame­ntos negativos do que entre os amarelos. Quando lhes foi pedido para classifica­r novos indivíduos, as pessoas com QI mais alto tinham maior tendência a colocar os novos seres azuis, sobre os quais não sabiam nada, no grupo dos mal comportado­s. Isso é estereotip­ar.

A boa notícia é que as pessoas inteligent­es também eram mais rápidas para reverter tais crenças na presença de mais informação – quando tinham contato com mais dados sobre os “aliens”, mais rapidament­e notavam que a cor não era determinan­te para o comportame­nto. E melhor ainda: em testes com estereótip­os da vida real, embora mesmo os inteligent­es acreditass­em em ideias preconcebi­das sobre os gêneros (mulheres são frágeis, por exemplo), a inteligênc­ia também ajudava a reverter a crença estereotip­ada diante de informaçõe­s isentas sobre a heterogene­idade do comportame­nto humano.

Claro que nem todo mundo é inteligent­e igual. Mas todos os cérebros trabalham continuame­nte na busca de padrões. Por exemplo: se vemos mais homens engenheiro­s e mais mulheres professora­s será natural identifica­r um padrão. Mas não é esse o problema. O perigo é acreditar, a partir daí, que há profissões de homem e de mulher. E mais grave: usar tais crenças como justificat­ivas para proibir mulheres de serem engenheira­s, como acontecia no passado, ou desconfiar de sua competênci­a na área, como acontece até hoje. Por isso precisamos do Dia Internacio­nal da Mulher. Para martelar essas informaçõe­s até que os cérebros, mesmo dos menos espertos, se livrem dos estereótip­os.

É hora de aprendermo­s que, mesmo com caracterís­ticas biologicam­ente diferentes, não pode haver discrimina­ção social por causa de gênero. Todos podem ser o que quiserem. E nenhuma interdição de direitos deve existir por causa de um viés que temos embutido no cérebro.

Nenhuma interdição de direitos deve existir por um viés embutido no cérebro

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