O Estado de S. Paulo

No câmpus de Nassar, desconfian­ça

‘Estado’ visita universida­de em que trabalhava o médico condenado por assedio de 265 meninas e onde foi mantido por 25 anos sem ser incomodado

- Jamil Chade

Nos corredores das instalaçõe­s usadas por ginastas no câmpus da Michigan State University, os ecos do maior escândalo do esporte americano continuam a ecoar. Nem os cadeados nos armários nem as manobras da cúpula da universida­de parecem abafar o que aconteceu. Ali, nas salas do Jeninson Field House, trabalhou por 25 anos o médico do time olímpico dos EUA, Larry Nassar, até então considerad­o um “mágico” na recuperaçã­o de atletas – agora condenado à prisão por assediar ginastas do time do país por mais de 20 anos.

“Eu o denunciei por assédio sexual há 20 anos e nada foi feito”, disse ao Estado uma dessas vítimas, Larissa Boyce. Para ela, os crimes de Nassar envolvendo 265 meninas não poderiam ter ocorrido por tantos anos sem a cumplicida­de de outras pessoas, inclusive dentro de sua universida­de. O caso que eclodiu em 2017 revelou como algumas das maiores estrelas da ginástica foram alvos de assédio por parte do médico.

Ele foi condenado no início do ano. Desde então, uma dezena de autoridade­s esportivas e acadêmicas foram obrigadas a deixar seus cargos. Entre elas está Scott Blackmun, CEO do Comitê Olímpico americano.

Nos corredores por onde o médico trabalhava, a certeza é de que o número de esportista­s vítimas de Nassar vai além das estrelas e que seus cúmplices conseguira­m evitar punição. Há duas semanas, Jacob Moore passou a ser o primeiro atleta masculino a denunciá-lo.

Em conversa com o Estado, Larissa conta que em 1997 estava na equipe juvenil de ginastas da Universida­de do Estado de Michigan (MSU) e que tudo o que ocorreu durante 20 anos poderia ter sido evitado se autoridade­s a tivessem escutado. A garota que hoje é mãe de quatro meninos explicou que saiu de uma consulta com Nassar e foi diretament­e relatar o que tinha ocorrido à sua treinadora, Kathie Klages, que levou um susto com sua narrativa. “Minha treinadora me disse que aquilo era um absurdo, que Larry era um médico reconhecid­o e que eu deveria pedir desculpas a ele.”

Tudo está muito vivo em sua mente. “Disseram que eu iria Estado de Michigan criar problemas para o Larry e para mim mesma. Então me convenci de que eu era o problema, que tinha uma mente pervertida. Eu me desculpei.”

Passados 20 anos, Larissa sabe hoje que o problema não era ela. “O problema é que ele continuou

a abusar de mim por mais dois anos. Eu tinha 16 e os adultos não acreditara­m em mim. Hoje, tive de passar por um processo de me desculpar a mim mesma por não ter ido adiante com as denúncias”, comentou.

Larissa faz um alerta. Diz que a história ainda não acabou. “O que ainda precisa ser determinad­o é como uma pessoa como essa foi autorizada a permanecer tantos anos em uma função tão central no esporte.” Ela e outras duas vítimas contaram ao Estado que, hoje, toda atenção está voltada à direção da Universida­de de Michigan, que manteve Nassar por anos e o recomendou para servir as ginastas dos EUA em Jogos Olímpicos.

Entre a comunidade da cidade de East Lansing, o sentimento é de consternaç­ão e preocupaçõ­es financeira­s. Nos meses que se seguiram à condenação do médico, a universida­de registrou queda de 40% em doadores, um dos pilares centrais do orçamento da instituiçã­o que investe a cada ano cerca de US$ 120 milhões (R$ 390 milhões) nos esportes. O local que foi o berço esportivo de Magic Johnson, da NBA, hoje é alvo de protestos e de enfrentame­nto aberto entre estudantes, esportivas e a direção da universida­de.

A presidente da MSU, Lou Anna Simon, abandonou seu cargo e, em carta aberta, admitiu que “nunca poderá se desculpar de forma suficiente” por causa da presença de Nassar dentro do câmpus. Ela, porém, é acusada de ter arquivado um processo contra o médico em 2014 e não ter repassado as reclamaçõe­s de estudantes para a polícia.

Processos. O temor não é apenas com a perda de doadores. Mas diante da possibilid­ade de uma proliferaç­ão de processos legais que poderiam custar caro aos cofres da universida­de. Há poucos anos, a descoberta de assédio por parte de um treinador da Penn State levou a instituiçã­o a ter de pagar US$ 250 milhões (R$ 813 milhões) em indenizaçõ­es para as vítimas.

Entre os alunos que conversara­m com o Estado, o sentimento é de indignação diante do comportame­nto da direção. “Esperar que a universida­de faça algo sozinha não é uma realidade”, disse Morgan McCaul, também vítima de Nassar. “Pessoas aqui dentro o inocentara­m e criaram o ambiente para que ele pudesse continuar a agir”. Procurada, a MSU se limitou a dizer que está colaborand­o com as investigaç­ões.

Jessica Smith, assediada na universida­de, pontua que a nova etapa do processo é a de saber quem foram os responsáve­is por permitir que Nassar mantivesse acesso a tantas meninas por tantos anos. “O que impression­a é que, depois de tudo o que já sabemos, temos ainda de lutar”, disse. Ela revelou ainda ter pesadelos. “Ele abusou de minha confiança e de meu corpo”. Jessica é professora de dança. “Com 17 anos, tive um problema no tornozelo e minha treinadora me mandou para ver Larry. Até hoje não sei como ele chegou às minhas partes íntimas”, disse. “Não podemos nos esquecer dessas histórias para que elas não se repitam.”

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BRENDAN MCDERMID/REUTERS-23/1/2018 Julgamento. Larry Nassar é escoltado por policial durante seu júri no último mês de janeiro: denúncias contra o ex-médico explodiram no final de 2017
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FOTOS: JAMIL CHADE/ESTADÃO Ginásio. Ginastas treinavam e conviviam com Nassar no local
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Armários trancados. Corredores da universida­de do

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