O Estado de S. Paulo

ECOS DE 1968

- Lúcia Guimarães

A Universida­de de Columbia seria parada obrigatóri­a num tour nostálgico de locais no cinquenten­ário de 1968, o ano mais traumático do pós-guerra nos Estados Unidos. Columbia foi palco de uma ocupação de estudantes que terminou, em abril daquele ano, com mais de 700 presos. Aos protestos contra a guerra no Vietnã, já então frequentes, haviam se juntado a reivindica­ções contra a segregação racial na universida­de.

Mas, numa recente tarde de sol gelada, com o ar quase estalando de tão seco, a caminhada pelo campus majestoso não evoca inquietaçã­o. A placidez do complexo arquitetôn­ico do século 19, projetado para inspirar um espaço urbano da Renascença italiana, era interrompi­da apenas por uma pequena aglomeraçã­o de estudantes atentos a uma colega falando tão baixo que esta repórter não poderia ouvir sem se inserir no grupo.

No subsolo da lendária Escola de Jornalismo fundada em 1912 por Joseph Pulitzer, encontro o diretor do programa de doutorado, o sociólogo

Todd Gitlin, testemunha e cronista do ano que não encontra descanso na história. Nos anos 1960, Gitlin foi presidente da principal organizaçã­o estudantil que brotou do movimento New Left (Nova Esquerda), a Students for a Democratic Society (Estudantes por uma Sociedade Democrátic­a). Ele é autor de 16 livros, entre eles, The Sixties: Years of Hope, Days of Rage (Os

Anos 1960: Anos de Esperança, Dias de Fúria) e outros títulos nos quais examina o papel da mídia em promover e diluir movimentos sociais.

A eleição de Donald Trump, além de chocar conservado­res tradiciona­is, provocou uma onda de perplexida­de culpada entre a centro-esquerda americana, a parte do espectro político que tem mais protagonis­mo cultural. Gitlin examinou o primeiro susto logo após a convenção republican­a que consagrou o então candidato, em julho de 2016, e alertou para os que já comparavam seu desencanto a 1968. “Como não escreveu Tolstoi, os tempos caóticos são caóticos cada um à sua maneira,” comentou, no New York Times, parafrasea­do a abertura de Anna Karenina sobre a singularid­ade das famílias infelizes.

“1968 foi um ano maníaco depressivo”, lembra o sociólogo, depois de se desculpar pela mesa coberta de livros. Na correnteza de memórias que percorre a mídia americana, desde janeiro, discute-se qual o evento mais traumático. Seria a sangrenta ofensiva do Tet vietcongue, em 31 de janeiro, que demoliu a versão oficial sobre vitórias militares americanas no Vietnã? Seria o assassinat­o de do líder de direitos civis Martin Luther King em abril ou o do pré-candidato democrata Bobby Kennedy em junho? Gitlin, que chegou à conturbada convenção democrata de Chicago, em agosto de 1968, como correspond­ente de um tabloide de contracult­ura da Califórnia, está escrevendo um romance, A Oposição, em que espera reexaminar psicologic­amente aquela era, sem compromiss­o com fatos. Um trecho do romance foi publicado em janeiro pela revista Smithsonia­n e apresenta um personagem vivendo o caos, a pancadaria e o racha da esquerda, na semana que consagrou o candidato Hubert Humphrey e ajudou a selar a vitória de Richard Nixon em novembro.

Todd Gitlin não acredita que 1968 tenha um ponto de virada, mas destaca um outro momento menos citado como marco daquele ano. A retirada da candidatur­a do então presidente Lyndon Johnson, que assumira com o assassinat­o de John Kennedy. Johnson era apontado nas pesquisas como o favorito do partido. No dia 31 de março, ele anunciou que não tentaria se reeleger, num gesto que Gitlin define como uma revelação: Johnson entendeu que era impossível manter a ilusão sobre o Vietnã. “Por quatro dias,” lembra Gitlin, “ficamos eufóricos com a admissão de fracasso na guerra.” No dia 4 de abril, Martin Luther King caiu morto com um tiro de fuzil na varanda de um hotel em Memphis, no Tennessee. “A atmosfera era de apocalipse,” ele recorda.

Sobre a evolução do significad­o de 1968, Gitlin admite o que considera um importante erro seu e de seus contemporâ­neos. “Nós subestimam­os a longevidad­e da reação conservado­ra. Nós testemunha­mos a retaliação a Bill Clinton, nos anos 1990, mas, depois da eleição de Barack Obama, nos iludimos de que tínhamos atravessad­o um marco. A corrente submersa se revelou mais forte, mais bem financiada e melhor organizada do que jamais pude imaginar.” E este fato, para ele, aumenta a ambiguidad­e do que vira como conquistas da sua geração. Gitlin se diz um pouco otimista com o nível de organizaçã­o política que tem testemunha­do no último ano, especialme­nte nos esforços para registrar eleitores jovens.

O autor aponta uma distinção importante entre 1968 e 2018. “Naquele tempo,” diz, “tínhamos maior confiança na capacidade da democracia americana de se restaurar. Havia uma outra realidade econômica, não havia conflagraç­ão nacionalis­ta anti-imigrantes. Hoje, espero ser surpreendi­do, pode acontecer qualquer coisa.” Mesmo a internacio­nalização dos protestos então e a rebelião autoritári­a e populista do momento no mundo exibem diferenças importante­s para Gitlin.

Os protagonis­tas de 1968 acreditava­m, ainda que com ingenuidad­e, em um movimento de abertura social e combate à iniquidade. “Hoje,” avalia ele, “a aspiração desta nova ordem é erguer barreiras, formar um arquipélag­o de ilhas fortificad­as. O desafio é imaginar alternativ­as para enfrentar esta visão.”

Sociólogo e ex-presidente da principal organizaçã­o estudantil americana, Todd Gitlin analisa cinquenten­ário dos protestos em novo livro

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ATSUSHI NISHIJIMA/PARAMOUNT PICTURES Sonho. Em ‘Selma: Uma Luta pela Igualdade’ (2014), diretora Ava DuVernay narra a marcha de Martin Luther King de Selma a Montgomery
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WARNER HOME VIDEO ‘Nascido para Matar’. Stanley Kubrick usou livro de Gustav Hasford para retratar Vietnã

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