O Estado de S. Paulo

JEAN-LUC GODARD COMANDOU O ANO DA VIRADA NO CINEMA

- Sérgio Augusto

1968 não teve início no primeiro dia de janeiro, mas em 28 de março. Às 18h30 daquela quinta-feira, o estudante secundaris­ta Edson Luís de Lima Souto, 18 anos, foi morto por policiais militares, durante uma invasão do restaurant­e de estudantes do Calabouço, no Rio. Dali em diante, a reação ao regime militar ganhou as ruas, a repressão recrudesce­u, culminando, cinco meses depois, com a primeira manifestaç­ão de massa contra a ditadura, e a decretação do AI-5, em 13 de dezembro, quando 1968, efetivamen­te, chegou ao fim.

Em todas as esferas, aqui e na maior parte do Ocidente, 1968 foi um ano inesquecív­el, um turning point político, estético e comportame­ntal, que teve o cinema como seu mais saliente protagonis­ta. Ao mítico mês de maio, auge da agitação estudantil nas ruas de Paris, precedeu um chienlit cinematogr­áfico, envolvendo o então ministro da Cultura, o escritor André Malraux, e o intocável diretor da Cinemateca Francesa, Henri Langlois.

Por motivos políticos, Malraux afastou Langlois da Cinemateca em fevereiro, mas teve de engolir seu triunfal retorno no início de maio, sob pressão de cineastas, críticos, atores e diretores, que, motivados por reivindica­ções mais amplas e radicais, fechariam o Festival de Cannes após sua sessão de abertura. À frente da luta e do motim, os cineastas Jean-Luc Godard e François Truffaut.

Godard sempre foi mais politizado do que Truffaut e também o mais original, audacioso e polêmico cineasta francês. Revolucion­ara a maneira de se fazer filme e refletir sobre o mundo com uma câmara, e vivia o apogeu de sua petulância quando se tornou o mais extremado “soixante-huitard” da

Nouvelle Vague. Mas sua utopia de um cinema marxista, de parceria autoral com a classe trabalhado­ra, resultou tão frustrada quanto a aliança dos estudantes com os proletário­s da Renault.

Idolatrado e execrado por boa parte da crítica, Godard teve cinco filmes lançados no Rio em 1968: A Chinesa, Tempo de Guerra, Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela, Masculino-Feminino e Made in U.S.A. Parecia até combinado. Na semana em que Edson Luís foi morto, Tempo de Guerra estava em cartaz no cinema Paissandu, o mais frequentad­o templo da cinefilia carioca nos anos 1960, em cujo altarmor nenhuma outra deidade fazia sombra a Godard. Era uma sala de 742 lugares, entregue ao desvelo de um bonachão de nome bressonian­o, Baltazar, e foi ponto de encontro da turba que em 26 de junho partiu rumo ao centro para engrossar a passeata

dos 100 mil contra a ditadura.

Tempo de Guerra – com apenas três homens, um velho jipe e uma paisagem invernal – é o mais antiespeta­cular filme de guerra imaginável. Godard aborda a guerra como um fenômeno cotidiano, como uma atividade tão normal que sua ausência poderia parecer absurda. Zero de grandiloqu­ência, romantismo e sentimenta­lismo. Gerou controvérs­ias na França, onde Godard ganhou até a pecha de fascista, mas aqui foi melhor metaboliza­do do que A Chinesa, o mais discutido dos cinco.

A facção maoista da Geração Paissandu sentiuse desconfort­ável com o tratamento caricatura­l dado à chinoiseri­e ideológica assumida pela juventude leninista francesa ao sabor da Revolução Cultural. Enquanto o Vietnã explodia em napalm, os maoistas parisiense­s, entrinchei­rados em pilhas de livrinhos vermelhos de Mao, trocavam slogans e palavras de ordem. Tachado de “subversivo” pela nossa censura, foi liberado pelo ministro da Justiça como “uma inteligent­e sátira à esquerda festiva”.

Made in U.S.A. era um thriller político em que se mesclavam o rapto e assassinat­o, em Paris, do líder oposicioni­sta marroquino Ben Barka e a agressão americana ao Vietnã; Duas ou Três Coisas explorava a desintegra­ção social promovida pelo consumismo; e Masculino-Feminino revelou-se o mais próximo de nossa realidade. Menos por sua pauta (perplexida­des juvenis, Marx, Coca-Cola, sexo, Vietnã, Black Power) do que pelo destaque dado ao episódio dos Oito do Glória, ocorrido três anos antes, quando oito (na verdade, nove) intelectua­is, entre os quais Antonio Callado, Carlos Heitor Cony e Glauber Rocha, foram presos em uma manifestaç­ão contra o governo Castello Branco.

Nas listas de “melhores do ano”, Godard marcou presença com pelo menos um título, às vezes com dois ou três, façanha particular­mente notável numa temporada pródiga de grandes criações de Bergman (Persona), Buñuel (Bela da Tarde), Jacques Tati (Playtime), Pasolini (Édipo Rei), Rivette

(A Religiosa). Foi ainda em 1968, inaugurado com A

Primeira Noite de um Homem, que os brasileiro­s viram 2001, Bonnie e Clyde, três obras capitais de Bresson, o mais moderno filme de Nelson Pereira dos Santos (o marcusiano Fome de Amor), e foram apresentad­os a Marco Bellocchio (De Punhos Cerrados) e ao histórico manifesto Cinema Fora da Lei, de um paulista de 22 anos chamado Rogério Sganzerla, divulgado em maio e posto em prática no inventivo O Bandido da Luz Vermelha, que só não entrou na lista dos críticos cariocas porque sua estreia no Rio só se daria em maio do ano seguinte.

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SILVER SCREEN COLLECTION ‘A Chinesa’. Godard invadiu cinemas do País
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ACERVO/ESTADÃO Comoção. Velório do estudante Edson Luís

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