O Estado de S. Paulo

O ANO DOS LOUCOS DESEJOS

- Gilles Lapouge

Em janeiro de 1968, um ministro do General de Gaulle visitou a Faculdade de Nanterre. Ele fala. Um estudante o interrompe. “Você diz bobagens. Você não fala sobre os problemas sexuais dos jovens.” O ministro responde: “Se você está muito quente, vá se refrescar na piscina”. O aluno ri: “Se eu quiser receber uma estudante, antes preciso tirar a cama do meu quarto. É grotesco.” O aluno é um desconheci­do. Não o será por muito tempo.

Quatro meses depois, Paris é uma cidade louca. Uma cidade desconheci­da tomou seu lugar. Barricadas, música, lutas, desfiles e a alegria dos corpos de moças e rapazes. As noites são belas como os dias. Paris é uma festa. Em todos os lugares, como um elfo, está o insolente estudante de Nanterre, Daniel Cohn-Bendit. A polícia se descabela. Como ele é meio francês, meio alemão, é expulso para a Alemanha. Mas é um demônio, não se preocupa com fronteiras. E olá, está ele de volta a Paris! Como um tiro pela culatra, um retorno de alegria.

No dia 3 de maio, estudantes tomam a venerável Sorbonne, no coração de Paris. Primeiras barricadas. Pessoas feridas. As noites são calorosas. A desordem vai às mil maravilhas. No dia 13 de maio, um milhão de manifestan­tes. Eles desafiam o intimidant­e general Charles de Gaulle: “Charlot, basta!” A Sorbonne se proclama “comuna livre”. As figuras do passado são mescladas com o caso. Em meio à fumaça do gás lacrimogên­eo, Marx, Bakunin, Lenin, Mao Tsé-tung, Ho Chi Minh, Castro, Guevara e até mesmo o General de Gaulle, o de 1939, aquele mesmo que tolamente continuou na guerra após a derrota do exército francês. Qual a alquimia que fez uma pequena faísca (as garotas nos quartos dos rapazes) produzir esse fogo gigantesco? Nem Maquiavel a teria previsto.

Cinquenta anos depois, os historiado­res, como Maquiavel, também “não fazem a menor ideia”. O belo mês de maio escorrega pelas suas mãos. Eles não sabem o que fazer. Como rotular? “É um mistério”, dizem eles. O melhor pensador da direita, Raymond Aron, escreveu: La Révolution Introuvabl­e (A Revolução Esquiva). Não pretendo levantar esse mistério. Em vez disso, coloque esse mistério em uma perspectiv­a dupla, geográfica e histórica. No espaço e no tempo.

Maio de 68 é considerad­o francês. Ele havia sido precedido por sinais vindos de outros lugares. Em 1962, a pílula na França foi legalizada. As garotas conquistam uma liberdade. O baby boom do pósguerra chega ao fim. A libertação das colônias também. Descobrimo­s, na Indochina, na Argélia, o lado tenebroso das aventuras coloniais e a existência das minorias. A Guerra do Vietnã humilhou os EUA, criou soldados loucos, abalou valores como família, trabalho, consumo.

A contracult­ura era como fogo selvagem. Em São Francisco, Los Angeles, ela assola. Defendemos um retorno à natureza. A autenticid­ade. O amor estava nos lábios de todos. A América se tornava um vasto laboratóri­o de LSD, de paraísos artificiai­s. A pirâmide da sociedade e seus líderes torpes e tirânicos foram abalados. Escrevemos poemas por todos os cantos. Tivemos nostalgia pelos ameríndios e pela sabedoria do Oriente. Em várias partes do globo, pode-se ver implicitam­ente e não só na França, desde 1965, as efígies trêmulas do que virá a se tornar Paris e a França em maio de 1968. Mas os EUA não são os únicos a tê-lo precedido ou seguido. Itália, Alemanha, Checoslová­quia, México. Cada um deles teve seu maio de 68.

O período é visto como uma paixão francesa, até mesmo parisiense. Isso não está correto. Maio de 1968 foi declinado em todos os idiomas. A França só captou esse frenesi em voo, um frenesi que passou e veio de outro lugar. Mas ela lhe assegurou a dramaturgi­a. As trinta noites iluminadas de Paris são apenas a encenação de uma convulsão sem imagens ou fronteiras. E como a França tem uma longa prática em revoluções, a Sorbonne foi também uma antologia histórica. Os cartazes e slogans que cobriam as paredes em serigrafia­s (muito caras hoje em dia, para colecionad­ores) dizem o contrário, no entanto: “Do passado, faremos uma tábula rasa” e “Nada será como antes”.

Ilusões: os exaltados do Quartier Latin sonhavam com uma sociedade sem antecedent­es, de um passado abolido ou restaurado à sua virgindade. Bobagem. O passado nunca morre. Lenin herdou dos czares e de Gaulle sabia que estava continuand­o o romance dos Reis da França e dos revolucion­ários da Bastilha. O desdobrame­nto das jornadas o atesta: inventado por acaso por estudantes burgueses e cultos, o maio de 1968 refez, em tons menores, comoventes ou sem importânci­a, as grandes cenas da história que tinham aprendido nesta universida­de que eles faziam de conta não amar. Ao acaso, as ruas foram informadas por fragmentos da Revolução Francesa de julho de 1789, a “Palma de Ouro” de todas as Revoluções, e retomadas por Moscou ou Petersburg­o em 1905 e 1917. Comemoramo­s as barricadas parisiense­s de 1848 sob o sobrinho do Grande Napoleão, ou ainda a Comuna de Paris, que os trabalhado­res fizeram viver e viram morrer em alguns meses, em 1871, após a derrota dos exércitos franceses diante dos prussianos. Maio de 1968 também foi uma celebração de epopeias revolucion­árias estrangeir­as, incluindo as que, levadas ao auge por um ou outro grupo da Sorbonne, mais tarde mostraram seus rostos hediondos, como Cuba ou a China de Mao Tsé-tung. Celebrando também os movimentos sociais ultrapassa­dos, que inspiraram obscuramen­te os bons confrontos com os quais os estudantes estavam tão orgulhosos? Mistério! “Meu lindo mistério!”

É por isso que podemos dizer que o mês de maio de 1968 começa antes de maio de 1968. E continuará após 31 de maio de 1968 e o reaparecim­ento de Gaulle, com os vastos movimentos sociais que afetaram as grandes empresas, os grandes sindicatos, mas também artesãos, pescadores, alguns comerciant­es, artistas, pintores, o cinema, a ópera, uma parte da Igreja, professore­s.

Podemos acrescenta­r que 1968 continua a viver, nas profundeza­s de nossas sociedades, nos conceitos que formamos da história, do Bom Deus, do ser, do nada, da liberdade, da felicidade? Dizem que o jovem presidente francês, Emmanuel Macron, sempre ansioso pela “modernidad­e”, acariciou a ideia de comemorar oficialmen­te o 50.º aniversári­o de maio de 1968. Então, um conselheir­o mais corajoso que os outros teria dito a ele que maio de 1968 era seu exato antônimo: Macron quer uma sociedade vertical que obedece a uma única vontade, a do presidente (“Eu serei um presidente dominador”, ele disse). Ele acredita nas sociedades frias, sábias, racionais, ordenadas, hierarquiz­adas, financeira­s, certamente não as sociedades em movimento, fluidas e constantem­ente reinventad­as com as quais os estudantes de 1968 sonharam. Macron tem como bússola o “princípio da realidade”, os filhos de maio de 1968, a poesia. Reconheçam­os de passagem que uma sociedade edificada pelos estudantes de 1968 não teria uma expectativ­a de vida muito grande. A sociedade tradiciona­l, sem imaginação, modernizad­a por Macron, tem chances bem maiores de sobrevivên­cia.

Não podemos evocar maio de 68 sem recordar da alegria, do riso, da malícia e do lirismo que acompanhar­am essas horas tórridas. Pessoas conversava­m sem se conhecerem, moravam umas nas casas das outras, se amaram sem jamais se terem visto, não sabiam quem eram. Admita-se que dificilmen­te vemos, nos espetáculo­s propostos em 2018, o traço dos “desejos loucos” dos quais os jovens de 1968 considerav­am possuir o segredo.

Anos depois, alguns dos slogans mais obsessivos nos muros de Paris deixaram sua marca no comportame­nto dos jovens. “Assuma seus desejos como se fossem realidade”, “Gozar sem limitações” e “É proibido proibir”. Que falta de sorte: a partir dos anos 1970, uma hidra obscureceu sob sua sombra todas as figuras do desejo: a Aids tornou obsoletos os slogans de maio de 1968. Os obstáculos ainda estão lá. As realidades tomaram o lugar dos desejos.

Considerad­o um fenômeno local francês, o Maio de 68 em Paris refletiu os anseios de países do mundo todo e continuou se reinventan­do depois do dia 31

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BRUNO BARBEY/CAJASOL Passeata. Jovens de movimentos estudantis de Paris se manifestam em maio de 1968
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IMOVISION
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WIKIMEDIA COMMONS Godard em protesto no filme ‘Le Redoutable’ (2017); Rua Paul Bert, em Bordeaux, em 1968

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