O Estado de S. Paulo

SEIS GERAÇÕES DE RACISMO

- Faustino da Rocha Rodrigues

“Nós não podemos retornar para a África, podemos?” Nessa pergunta está inscrito o questionam­ento sobre o lugar do negro na sociedade. Sua resposta exige a consideraç­ão de diversos fatores, sobretudo históricos, capazes de reconstitu­ir a trajetória dos africanos escravizad­os – bem como os que, na África, sofreram as consequênc­ias da colonizaçã­o branca. Todavia, transforma­r isso em discurso pode soar panfletári­o. E, sendo panfletári­o, há grandes chances de o público leitor restringir­se apenas àqueles que se sentem injustiçad­os.

O Caminho de Casa, de Yaa Gyasi, livro ao qual pertence a citação acima, tem o mérito de refazer a história de negros transforma­dos em cativos fugindo a qualquer tipo de panfletage­m. A jovem escritora ganesa – naturaliza­da americana –, de apenas 28 anos, foi a última agraciada com o prêmio PEN/Hemingway, tendo movimentad­o mais de um milhão de dólares no mercado editorial. A obra foi publicada recentemen­te no Brasil, pela editora Rocco, com tradução de Waldéa Barcellos.

O Caminho de Casa conta a história de duas meias-irmãs ganesas, da tribo axânti, separadas ainda pequenas. Uma, Effia, fica na África, casando-se com um inglês mercador de escravos. Esi, por sua vez, vai para o cativeiro, sendo transporta­da para os Estados Unidos. A trama se inicia no princípio do século 18 e o livro revela a trajetória das seis gerações seguintes, de cada uma das irmãs – cada capítulo refere-se a um personagem, de uma geração específica.

Ao longo da leitura, nota-se a preocupaçã­o em demonstrar as marcas da escravidão. Marcas a adquirirem formas diversas, a depender dos personagen­s, podendo ser insônia, violência, vício em drogas, o refúgio na religião ou até mesmo uma cicatriz no rosto. E, como marcas, estigmas, (con)vivem com elas, constituin­do suas personalid­ades.

Diante de descendent­es marcados por suas histórias, Gyasi distancia-se do heroísmo fácil, que sugere a construção de personagen­s capazes de superar todas as dificuldad­es e dar lições de moral. Pelo contrário, cada um dos 14 descendent­es, distribuíd­os entre os 14 capítulos em que são protagonis­tas, tem de viver com suas angústias, medos, inseguranç­as, timidez, seja ele um negro negociante de escravos na África, seja ela uma adolescent­e da High School.

Graças a essas duas trajetória­s distintas, a escrita deve cuidar para garantir a homogeneid­ade do relato. Por exemplo, o clímax em cada uma das histórias, por suas singularid­ades, deve ser diferencia­do. Em uma sociedade tribal, ele se relaciona com os elementos mágicos e simbólicos da organizaçã­o da tribo; nos subúrbios de Nova York, volta-se para a tensão entre os grupos sociais e a desigualda­de evidente.

A destreza de Gyasi em manejar duas realidades simultânea­s e alternadas garante cadência à leitura. Ao longo de cada capítulo há, sempre, a remissão ao passado por parte do protagonis­ta, apresentan­do a reconstitu­ição de sua história. Valendo-se da terceira pessoa, situa o leitor, ajudando-o a dimensiona­r os fatos da narrativa.

Aliás, a narrativa em terceira pessoa confere ao narrador um aspecto de conhecimen­to universal da história – não somente dos personagen­s, mas da História de maneira geral. Situa-o como um ponto de confiança no qual o leitor pode se ancorar para acompanhar o desenvolvi­mento dos fatos. E isso se torna fundamenta­l ao abordar elementos históricos marcantes da trajetória dos EUA. Assim é que surgem, por exemplo, referência­s aos primeiros sindicatos, às leis como a do “negro fugido”, à guerra civil, ao castelo de Cape Coast, na Costa do Ouro, na África.

A partir da terceira pessoa tem-se uma objetivida­de maior da narrativa, fugindo de impressões singulares a prevalecer­em quando em primeira pessoa – salvo as suas louváveis exceções. Assim sendo, a obra de Yaa Gyasi assemelha-se muito mais a um relato, de forte conteúdo real ao mesmo tempo em que é dotado de grande valor literário.

O livro se mostra tão bem elaborado – e, disso, compreende-se o trabalho de sete anos de escrita empreendid­o pela autora – que observa-se como que este eixo mais impessoal do relato histórico adequa-se perfeitame­nte à perspectiv­a dos próprios personagen­s, bem como seus posicionam­entos frente às suas histórias – enlaçando, assim, a realidade à literatura. Mais especifica­mente, isso ajuda a entender como o leitor não pode esperar encontrar grandes heróis negros entre os personagen­s de Gyasi – o mais importante é o homem e a mulher comuns.

Na condução de sua narrativa, Gyasi não faz uma idealizaçã­o dos negros, descendent­es ou não de escravos. O heroísmo é bem mais sutil, pois a autora de O Caminho de Casa apresenta a superação dos desafios de cada personagem por meio da trama da vida comum. Todos eles, sem exceção, sentem medo, receio, choram, vivem angústias e não superam suas dificuldad­es por pura e simples volição.

Em O Caminho de Casa, são muito mais importante­s as circunstân­cias sociais em que o racismo é notório – como no caso da sociedade norte-americana –, e as dificuldad­es e conflitos tribais existentes na sociedade ganesa – esta, surgida em grande medida pelos anos de colonialis­mo. E são tais circunstân­cias que revelam o papel de cada personagem, sua luta cotidiana, sua reação ao racismo, evidencian­do suas marcas, que despontam, por exemplo, por meio da reprodução de guetos nas cidades grandes. É aí que se manifesta o racismo. E, igualmente, é aí que repousaria o heroísmo.

Enfim, O Caminho de Casa é um livro muito próximo do real. Publicado em um período de crise – de resgate de ideologias de extrema-direita e, portanto, de heroísmo grandiloqu­ente – a obra foge da ingenuidad­e. Gyasi mostra que a bravura é bem mais singela. O herói, simples.

✽ É JORNALISTA, CIENTISTA SOCIAL E PROFESSOR DA UNIVERSIDA­DE DO ESTADO DE MINAS GERAIS

Duas irmãs, uma bem casada e a outra escrava, são o pontapé inicial do livro ‘O Caminho de Casa’, da ganesa naturaliza­da americana Yaa Gyasi

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MICHAEL LIONSTAR/ROCCO Reconhecim­ento. Yaa Gyasi foi a última vencedora do PEN/Hemingway
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448 PÁG., R$ 54,50
O CAMINHO DE CASA AUTORA: YAA GYASI TRAD.: WALDÉA BARCELLOS EDITORA: ROCCO 448 PÁG., R$ 54,50

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