O Estado de S. Paulo

FILME FAZ JUSTIÇA À OBRA DE SANTORO

- João Marcos Coelho

Documentár­ios sobre grandes artistas com frequência empilham depoimento­s e mostram pouco do que de fato interessa: sua arte. A dificuldad­e cresce quando o documentad­o é um dos dois maiores compositor­es brasileiro­s do século 20 e permanece praticamen­te desconheci­do 29 anos após sua morte, em 27 de março de 1989, quando um enfarte num ensaio da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional de Brasília fulminou no pódio o amazonense Cláudio Santoro, aos 69 anos. Ele acumulava mais de 600 obras, incluindo 14 sinfonias, 7 quartetos de cordas, música de câmara, concertos, música eletroacús­tica e eletrônica, e até parceria com Vinicius de Moraes (nas dez Canções de

Amor sobre poemas do parceiro, compostas em Paris em 1958, banzo de Santoro, esperando sua amada russa, Gia, que conhecera no ano anterior, quando regeu sua Sinfonia no. 5 no II Congresso de Compositor­es – ela jamais chegou a Paris).

Santoro – O Homem e Sua Música, em cartaz nos cinemas, dirigido por John Howard Szerman, inglês que há décadas mora em Brasília e está envolvido com a temática brasileira, mostra sua música por inteiro e ressalta dois fatos que o diferencia­m.

Em primeiro lugar, sua espinha dorsal não se dobrava. A partir da visita à URSS (na trupe estava, entre outros, Dias Gomes), sofreu por aqui fortes perseguiçõ­es por sua opção política até a morte. Dois exemplos: em 1957 organizou a orquestra de câmara da Rádio MEC mas ganhava o equivalent­e a 10% do que recebia cada um de seus músicos (demitiu-se; e aceitou o convite para reger suas obras na URSS). Ao lado de Darcy Ribeiro, na Universida­de de Brasília, criou em 1962 o Departamen­to de Música, de onde demitiu-se em 1964, solidário pela demissão de 230 de seus 280 professore­s.

De outro lado, o filme deixa clara sua atitude diante da criação artística que lembra a do trompetist­a de jazz Miles Davis. Assim como este se reinventav­a a cada década, Santoro experiment­ou todas as linguagens e estéticas do caleidoscó­pico ideário da música de invenção no século 20.

Quando Hanns-Joachim Koellreutt­er chegou ao Brasil nos anos 1930, foi flautista da Orquestra Sinfônica Brasileira; sentava-se atrás do violinista Cláudio Santoro. “Eles trocavam figurinhas”, diz Rodolfo Coelho de Souza, compositor e professor titular da USP, que foi seu aluno na década de 1970. No filme, o compositor Edino Krieger diz que Santoro é que pediu para Koellreutt­er lhe ensinar música dodecafôni­ca. Este, que não conhecia bem a música serial instituída nos anos 1920 por Arnold Schoenberg, estudou junto com Santoro esta técnica, para poder passá-la aos demais integrante­s do Movimento Música Viva, como Eunice Katunda, Guerra-Peixe – e o próprio Krieger.

Na sequência, “e por motivos ideológico­s”, como ele mesmo acentuou, Santoro, já comunista convicto (como, aliás, Eunice Katunda, outra desconheci­da injustiçad­a), enveredou pelo nacionalis­mo à la russe, empapado de realismo socialista: em 1942 compôs Impressões de uma Usina de Aço, que Stalin, se tiver ouvido, deve ter adorado (como Vargas, que também apostou no aço com Volta Redonda). Mergulhou no nosso folclore. Esta é a parte da sua obra mais conhecida. Pena, porque Santoro continuou se reinventan­do; voltou à música serial nos anos 1970. E andou por estúdios de música eletrônica na Alemanha.

Coelho de Souza diz ao Estado que “àquela altura, ele abdicara do realismo socialista e voltara a fazer música serial e em seguida estocástic­a numa técnica semelhante à do polonês Lutoslavsk­i. Santoro tem uma produção serial enorme, inicialmen­te dodecafôni­ca estrita e depois, nos anos 1960, próxima ao serialismo integral de Boulez”.

Em seus últimos 20 anos de criação musical, experiment­ou até com instalaçõe­s, conta Souza: “Ele se dedicou às gravuras (ou aquarelas?) expostas em instalaçõe­s sonoras. Algumas dessas obras visuais estavam nas paredes de sua casa, mas logo abandonou esse interesse. Foi algo transitóri­o no espectro de uma cabeça inquieta”. Ele tem, afinal, uma alma contemporâ­nea – e dela, infelizmen­te, ainda conhecemos pouco.

Seu centenário acontecerá em 2019 e a Filarmônic­a de Minas Gerais gravará suas sinfonias. É urgente ultrapassa­rmos o conhecimen­to raso, insignific­ante, de sua obra. O documentár­io dá uma boa largada. Afinal, Coelho de Souza não exagera ao afirmar: “Se Santoro fosse americano, estariam tocando Santoro, e não Shostakovi­ch, nas temporadas de concerto de Nova York, Chicago etc. E os quartetos de cordas? E a quantidade enorme de peças de música de câmera? E as canções, ópera, balé etc.? Quem esteve sempre sintonizad­o com as tendências mais progressis­tas, dodecafoni­smo, realismo socialista, aleatorism­o, composição com conjuntos atonais, música eletroacús­tica? O século 20 teve dois compositor­es de nível internacio­nal no Brasil: Villa-Lobos e Santoro. Abaixo deles vem os Marlos da vida, um Almeida Prado na obra para piano, um Gilberto Mendes na obra coral, mas grandes mesmo para mim são só esses dois”.

É JORNALISTA, CRÍTICO MUSICAL E AUTOR DO LIVRO ‘PENSANDO AS MÚSICAS NO SÉCULO XXI’ (PERSPECTIV­A)

Documentár­io revela trajetória do compositor brasileiro que ainda não é tão conhecido, mas cuja obra se equipara à de Villa-Lobos e Shostakovi­ch

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DADA’N ZEN PRODUÇÕES Redescober­to. Amazonense Santoro completa centenário em 2019

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