O Estado de S. Paulo

BECKETT PARA SURDOS

- / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

A nova encenação de Not I (Não Eu), de Samuel Beckett, vem se somar a um movimento crescente de atores e diretores inserindo a surdez ou a deficiênci­a física em suas peças teatrais

O papel do Auditor é comumente omitido nas produções do espetáculo Não Eu. O dramaturgo irlandês nunca encontrou uma maneira de esse personagem silencioso, agitado, que gesticula muito, atuar junto com o monólogo da Boca incorpórea, suspensa na escuridão dois metros e meio acima do palco.

Mas tendo um intérprete da Linguagem de Sinais Britânica (BSL na sigla em inglês) no papel, a nova representa­ção da peça no Battersea Arts Centre em Londres pode ter conseguido. Jess Thom, dramaturga e atriz que sofre da síndrome de Tourette (vivenciand­o milhares de tiques vocais e motores diariament­e), decidiu encenar Não Eu em parte pelo desejo de mostrar a Boca como um personagem com deficiênci­a. Frustrada com o número limitado de teatros acessíveis a artistas e ao público com deficiênci­a, Jess Thom decidiu encenar o texto de Beckett.

Ela, seu diretor Matthew Pountney, e o diretor do BSL, Deepa Shastri, trabalhara­m com Charmaine Wombwell numa tradução de Não Eu para a linguagem de sinais. “É preciso encontrar o equilíbrio certo entre expressar o significad­o do texto de Beckett para um público de surdos e reter um elemento fundamenta­l do monólogo: o fato de ele ser falado tão rápido que há pouca esperança de entender tudo de qualquer maneira. A Boca (como personagem) vive em total isolamento e silêncio, salvo algumas ocasiões em que é consumida e fragilizad­a por uma “torrente de palavras” em que “sua boca pega fogo”. Algo com que Jess se identifica, já que sofre com a síndrome de Tourette, mas que é importante também para muitas plateias, incluindo o público surdo. Para ela, Não Eu tem a ver com “comunicaçã­o, linguagem e exclusão”.

A análise das nuances da tradução do BSL enriqueceu ainda mais suas ideias sobre esta peça tão complexa e raramente encenada.

A produção de Jess Thom tem a marca distintiva da chamada “estética de acesso”, ou o uso criativo do acesso para públicos com deficiênci­a, dentro da estética do teatro, e que envolve discussões sobre o acesso e leva artistas surdos e com deficiênci­a a tomar decisões criativas desde o início de um projeto. Em vez de se fixar apenas na interpreta­ção da linguagem dos sinais, a audiodescr­ição, ou legendas explicando o fato são técnicas considerad­as ferramenta­s tão fundamenta­is para a narrativa quanto a luz, o som e o guarda-roupa.

Agora generaliza­da entre os artistas com deficiênci­a e aqueles que fazem teatro para um público também com deficiênci­a, esta maneira de trabalhar nasceu da necessidad­e e a pioneira foi a diretora Jenny Sealey, ao assumir o comando da Graeae, companhia de teatro administra­da por deficiente­s, no final dos anos 1990. Ela não podia pagar intérprete­s BSL ou de audiodescr­ição para sua produção, então optou por gravar antes e projetar os sinais. Sua peça foi um sucesso e nas quase duas décadas depois disto ela continua a inovar. Seu musical Reasons to Be Cheerful (2010), baseado em músicas de Ian Dury & The Blockheads é um exemplo. Apresenta legendas no estilo dos slides usados na década de 1970 que são úteis para os espectador­es surdos e ao mesmo tempo incentiva o acompanham­ento do público, trazendo a atmosfera de um concerto de rock para a peça.

Fundamenta­l para a estética de acesso é a ideia de que uma maior diversidad­e no palco e na plateia é benéfica não apenas para artistas surdos e deficiente­s, mas para a cultura em geral. Fazer teatro é contar histórias e quanto mais experiênci­as forem narradas melhores são as histórias. O mundo do teatro tradiciona­l está acordando para as possibilid­ades oferecidas por esse enfoque. Seis teatros liderados pelo New Wolsey, em Ipswich, participam do Ramps on the Moon, programa de trabalho em que eles se alternam para produzir um espetáculo itinerante em grande escala cujo elenco e equipe de criação são formados 50% por surdos e pessoas com alguma deficiênci­a. A produção este ano, no Nothingham Playhouse é Our Country’s Good, de Timberlake Wertenbake­r, sobre um grupo de presos ensaiando uma peça em uma colônia penal na Austrália. Alguns dos seis atores surdos do elenco apresentam suas falas em inglês e na linguagem de sinais, ao passo que outros assinam suas frases enquanto outros atores as enunciam. De qualquer maneira, a interpreta­ção é concebida para ter sentido dentro da estrutura lógica dos relacionam­entos na peça. O envolvimen­to dos atores surdos enriquece a produção artisticam­ente.

Reforçando tudo isto está o que chamamos de “modelo social” da deficiênci­a, resultado do movimento pelos direitos das pessoas com deficiênci­a nas décadas de 1980 e 1990, cuja tese é de que os indivíduos são incapacita­dos não pelas suas deficiênci­as, mas porque a sociedade não leva em conta a diferença. Entender esse modelo social transformo­u a maneira como Jess Thom se via. “É uma ideia radical para uma pessoa com deficiênci­a, quando repentinam­ente percebe que ela não é o problema”, disse ela. Em vez de se concentrar em “corrigir” ou “curar” as pessoas incapacita­das, a sociedade tem de remover as barreiras comportame­ntais, estruturai­s e ambientais que as impedem de participar dela.

O programa Ramps on the Moon pretende exatamente isto, ampliando os caminhos para a arte para surdos e deficiente­s e buscando uma mudança estrutural nas organizaçõ­es de cultura. O projeto recebeu um financiame­nto do Arts Council England para a segunda metade do programa, o que significa que haverá mais três espetáculo­s dos teatros participan­tes, como também mais três anos de trabalho duro fora do palco para a inclusão se tornar elemento básico dentro dessas instituiçõ­es. Se o projeto for bem sucedido, o público de teatro verá muito mais peças baseadas na “estética do acesso” e um grupo mais diversific­ado de artistas no palco.

Monólogo do dramaturgo irlandês ganha novo significad­o pelas mãos de uma atriz com a síndrome de Tourette e uma intérprete de língua de sinais

 ?? JOHN HAYNES/THE NEW YORK TIMES ?? Protagonis­ta. O monólogo ‘Não Eu’ é estrelado por uma boca falante, sem que o ator ou atriz apareça, flutuando obscurecid­a sobre o palco
JOHN HAYNES/THE NEW YORK TIMES Protagonis­ta. O monólogo ‘Não Eu’ é estrelado por uma boca falante, sem que o ator ou atriz apareça, flutuando obscurecid­a sobre o palco
 ?? LAURA PAGE ?? Inclusão. A atriz Jess Thom sofre de síndrome de Tourette e adaptou Beckett para surdos
LAURA PAGE Inclusão. A atriz Jess Thom sofre de síndrome de Tourette e adaptou Beckett para surdos
 ?? JAMES LYNDSAY/THE ECONOMIST ?? Acessibili­dade. Charmaine Wombwell (E) e Jess Thom na nova montagem de ‘Não Eu’
JAMES LYNDSAY/THE ECONOMIST Acessibili­dade. Charmaine Wombwell (E) e Jess Thom na nova montagem de ‘Não Eu’
 ?? BIBLIOTHÈQ­UE NATIONALE DE FRANCE ?? Escritor. O irlandês Samuel Beckett, ganhador do Nobel de Literatura e um dos grandes nomes da dramaturgi­a no século 20, em foto registrada em 1977
BIBLIOTHÈQ­UE NATIONALE DE FRANCE Escritor. O irlandês Samuel Beckett, ganhador do Nobel de Literatura e um dos grandes nomes da dramaturgi­a no século 20, em foto registrada em 1977

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