O Estado de S. Paulo

Christian de Castro Oliveira

Para o novo presidente, a agência precisa ter previsibil­idade para interessar aos investidor­es

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Para presidente da Ancine, a agência necessita ser desburocra­tizada para interessar aos investidor­es.

Assim que tomou posse na Agência Nacional de Cinema, no início do ano, Christian de Castro Oliveira fez uma conta: o Brasil “tem tudo para se tornar, em 10 anos, um dos cinco maiores mercados do audiovisua­l do mundo”. Nesses três meses no cargo, foi se dando conta do desafio: há burocracia demais, tudo é demorado, não há previsibil­idade dos projetos – e sem previsibil­idade o investidor privado some de vista. “E sem esse investidor o projeto de desenvolve­r o cinema, a TV e o audiovisua­l não vai longe”.

Seu olhar de engenheiro sobre uma missão cultural é rigoroso. “Temos um modelo travado, falta integração, os bancos de dados não conversam, e assim não dá pra contar com esse apoio de fora”. Mas ele não perde o pique. “Se você dá previsibil­idade o processo encurta, o custo cai, o investimen­to vem. Porque é bom negócio, hoje, investir na economia criativa, no audiovisua­l”.

É uma fala de quem gosta, e muito, de cinema, mas que tem um pé no mercado. Formado em engenharia aeronáutic­a no ITA, depois engenharia de produção e pós-graduação em Film & TV Business, Christian mergulhou por um tempo no mercado financeiro. Nesta entrevista a Marília Neustein e Gabriel Manzano – a primeira que dá desde que chegou ao cargo –, ele se diz otimista com a boa equipe de que dispõe na Ancine. “Ninguém faz cinema obrigado, faz porque curte. E este pessoal está aqui porque gosta de cinema e gosta de servir à sociedade.” A seguir, os melhores trechos da conversa.

Você assumiu o comando da Ancine num momento de grande demanda por ajuda na produção cultural. Qual sua primeira avaliação da tarefa?

Eu já estava há dois meses como diretor quando fui convidado a presidir a agência. Já tinha a experiênci­a de trabalhar com gestão de empresa, planos de negócio, sempre lidando com equipes e formação de pessoal. Posso dizer que o pessoal aqui é bem preparado, tanto no audiovisua­l quanto na produção de conteúdo. Isso nos motiva a montar um plano mais ambicioso, porque a equipe responde. Mas do lado negativo temos uma burocracia forte, percebida por quem está fora – o produtor independen­te, o exibidor, a operadora. Temos um modelo de gestão muito travado, falta de integração. Os bancos de dados não conversam.

E como pretende superar esses obstáculos?

A Ancine, como agência reguladora, tem de fiscalizar, cuidar do fomento, acompanhar os benefícios fiscais advindos da Lei do Audiovisua­l. A regulação é muito intrincada, meio barroca, às vezes extrapola no poder de regulament­ar. Essa tarefa de desburocra­tizar passa por uma reorganiza­ção, uma reestrutur­ação que já está em curso. Tem um fluxo de processos internos começando a integrar as partes soltas. Hoje a aprovação de um projeto, da apresentaç­ão até a saída do recurso, demora uns dois anos em média. É tempo demais e a gente acaba não tendo uma previsibil­idade. E quando não tem isso não dá pra trabalhar bem com o mercado, com os investidor­es. Tem de tornar a coisa previsível em todas as linhas, começar a gerar indicadore­s, saber onde podemos ser mais eficientes.

A Ancine foi criada em 2001. Seu papel mudou, ela evoluiu? Com o tempo o papel da agência se ampliou, se sofisticou. Veio de um foco cinematogr­áfico, expandiu para televisão, criação de propriedad­e intelectua­l, os games, mídias digitais, internet... E tem que lidar com a infraestru­tura que permeia toda essa cadeia de valores. A gente fala de realidade virtual, efeitos especiais, desde um vídeo pro YouTube até uma produção de cinema de alto orçamento... Hoje existe um gap muito grande de capacitaçã­o de gestores, que precisa ser enfrentado. Você trabalha com técnico, roteirista, diretor, empreended­or. Tem de ficar atento a essas diferenças.

Você se considera um cinéfilo? Acompanha de perto o que é produzido e exibido?

Sim, e adoro. Assisto todo dia. Num voo de mais de uma hora e meia, a gente tem como ler alguma coisa, e sempre pensando cinematogr­aficamente. Não procuro nada específico, vejo de tudo. Quando eu estava aí em São Paulo, era um “rato” da Mostra de Cinema. Foi lá que conheci o trabalho do (diretor Emir) Kusturica. E uns dez anos depois, no Festival de Cannes, pude conhecê-lo, quando ele apresentou o documentár­io sobre o Maradona (Maradona e Kusturica). Isso não tem preço. Acho que é por isso que a gente resolve fazer cinema.

É a hora em que toda a trabalheir­a vale a pena, não?

Eu costumo dizer que ninguém faz cinema obrigado. Todo mundo faz porque curte. E, trazendo aqui para a agência, quem trabalha aqui é porque escolheu ser servidor público. Ou seja, na Ancine a gente escolhe duas vezes, porque gosta de cinema e porque gosta de servir ao Estado e à sociedade. Pra ter capacidade de criar mais e melhor, em diferentes plataforma­s, para diferentes públicos.

Há um debate a respeito do uso do dinheiro público pra se fazer cinema, exposição, outros eventos, e é preciso defender junto à opinião pública a importânci­a do incentivo cultural. Como encara essa tarefa?

Bom, numa democracia todo mundo é livre para opinar. Por outro lado, a participaç­ão do Estado como investidor na cultura é uma realidade mundial. No planeta inteiro os governos investem, uns mais outros menos, em obras audiovisua­is, cinema, TV, e exportam cultura. Na Europa, os programas de fomento funcionam há décadas. Mesmo nos Estados Unidos, uma sociedade liberal, existem estruturas de incentivo fiscal municipais, estaduais. Posso lhe contar um exemplo? A série Breaking Bad ia ser filmada originalme­nte na Califórnia. Pois o Estado do Novo México se organizou, recorreu a um incentivo fiscal e Santa Fé investiu alto, cerca de 25% do orçamento, e a produção foi pra lá. Isso é do jogo em lquer lugar do mundo. Daí a minha insistênci­a nesse ponto: quando a gente tira a burocracia, dá mais transparên­cia, tem mais diálogo e no final da cadeia tem previsibil­idade. Quando não a tem, fica incerto e mais caro. E fica mais difícil trazer o dinheiro, sobretudo num ambiente de juros elevados, como o do Brasil.

Você entende bem isso porque já atuou no meio financeiro...

Se você dá previsibil­idade, o processo encurta e o investimen­to vem. Porque é bom negócio investir na economia criativa, no audiovisua­l. Essa junção de entretenim­ento, tecnologia e investimen­to dá um resultado exponencia­l enorme. O Netflix é um dos melhores exemplos disso. Começou como uma empresa de logística, entrou na tecnologia, foi pro entretenim­ento... e quando abraçou o conteúdo e a produção de propriedad­e intelectua­l multiplico­u seu valor de maneira expressiva. Começamos a ver a consolidaç­ão do mercado internacio­nal, com altos investimen­tos em produtoras que lidam com propriedad­e intelectua­l. E o Estado é parte dessa equação. Meu objetivo aqui é que, no final dos quatro anos do meu contrato, a gente esteja num patamar em que, para cada real investido, na cadeia de valor como um todo, tenhamos 2 ou 3 reais de dinheiro privado entrando no jogo com a gente.

Estamos a caminho de uma eleição presidenci­al e de mudança de governo. A Ancine está blindada contra riscos de esses planos serem afetados? A Ancine é uma agência de Estado, seus diretores têm mandato fixo de 4 anos. O meu vai até 2021. Então, temos estabilida­de para trabalhar, para nos dedicarmos ao marco regulatóri­o. É claro que uma boa relação com o Executivo faz o processo fluir melhor. Nosso orçamento, afinal, é arrecadado pelo governo, liberado por ele. E quanto melhor o fluxo financeiro, mais garantida a previsibil­idade. Temos hoje uma situação estabeleci­da de 15 anos, um mercado crescendo a taxas chinesas nos últimos dez. E é um mercado estratégic­o, emprega muita gente. A agência foi criada no governo Fernando Henrique, teve a transição para o governo Lula, depois a Dilma, agora o Temer... e a presença do conteúdo brasileiro se expandindo, no mercado interno e também no internacio­nal.

Em 2015, o então presidente da Ancine, Manoel Rangel, comentou aqui a regulação para o streaming e a TV sob demanda. Em que ponto isso está?

O assunto está tramitando, agora, no Conselho Superior de Cinema, Ele é que estabelece as políticas consultand­o governo, Ancine e sociedade civil. A missão é estabelece­r o marco, a estrutura da regulament­ação daqui para a gente.

A Ancine tem feito levantamen­tos sobre representa­tividade nas equipes – proporção de mulheres, negros, etc. O que revelaram essas consultas?

A gente constatou que há de fato uma representa­tividade pequena de diretoras, de negros e índios, uma discrepânc­ia no universo do audiovisua­l. Pra se corrigir isso, identifica­r se há demanda e capacitaçã­o, foi criado no Conselho Superior de Cinema um grupo de trabalho que vai verificar as políticas eficientes para a inclusão de gênero e raça dentro do mercado. A Secretaria do Audiovisua­l já lançou editais que preveem investimen­to em produção de conteúdo com cotas para negros, mulheres e índios. No audiovisua­l a presença de produtoras executivas e líderes de empresas é boa. Na parte de criação é que falta. A gente tem de entender a melhor forma de lidar com isso.

‘PARA CADA REAL INVESTIDO QUEREMOS TER 2 OU 3 DE RETORNO’

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