O Estado de S. Paulo

Brincando e aprendendo

Novos espaços não formais de educação infantil surgem na cidade, defendendo que as crianças aprendem por meio de seus próprios interesses e não de atividades programada­s por professore­s. Movimento, conhecido como unschoolin­g, rejeita escola regular

- Renata Cafardo

Um aprendizad­o baseado nas experiênci­as naturais. Essa é a orientação para crianças de 1 a 6 anos em novos espaços de educação não formal na capital. São locais que seguem um movimento de desescolar­ização de crianças com até 6 anos, embora a legislação estabeleça matrícula obrigatóri­a a partir dos 4 anos. As mensalidad­es vão de R$ 900 a R$ 2 mil.

Não tem hora certa para brincar lá fora ou para a roda da história. Crianças pequenas de idades variadas, entre 1 e 6 anos, estão espalhadas pelos ambientes que lembram uma escola. Algumas sobem em pedaços de madeira, outras fazem bolo de areia, se penduram em cordas ou folheiam livros. Também não há salas de aula nem professor, apesar de ter adultos no espaço. Cada um dos pequenos se ocupa com o que quer se ocupar.

Um número crescente de espaços não formais de educação infantil tem aparecido nos últimos dois anos em São Paulo. Fazem parte de um novo movimento de rejeição às escolas para crianças menores de 6 anos. Não se tratam de lugares para brincar antes ou depois do período escolar. As crianças não frequentam a escola e ficam nesses locais diariament­e – apesar de algumas terem mais de 4 anos, idade em que a matrícula é obrigatóri­a por lei. As mensalidad­es vão de R$ 900 a R$ 2 mil.

A tendência tem ligação com o conceito chamado de desescolar­ização ou unschoolin­g, cunhado nos anos 70 nos Estados Unidos para definir um aprendizad­o que se dá pelas experiênci­as naturais da vida. A ideia principal nas instituiçõ­es é de que as crianças se desenvolve­m com base nas suas próprias necessidad­es, interesses, vontades e curiosidad­es. Ou seja, acredita-se que elas aprendam principalm­ente exercendo a autonomia. E não a partir do que o adulto considera ideal para elas. O conceito é criticado por especialis­tas que dizem que, para aprender a viver em sociedade, a criança não pode escolher sempre (mais informaçõe­s na pág. A11).

A expressão mais repetida nas cinco instituiçõ­es visitadas ou consultada­s pelo Estado foi “livre brincar”. “Se a criança passou a manhã inteira cavando na areia, confio que o corpo dela precisa desse movimento. Não vou chamá-la e dizer ‘vem pintar’”, afirma uma das proprietár­ias da Aldeia das Crianças, a pedagoga Isabela Meirelles Tavares, de 34 anos.

Ex-professora de escolas de classe alta, ela abriu o espaço com uma sócia há 1,5 ano. Sem fazer qualquer tipo de propaganda, nem sequer pôr nome na porta, hoje já recebem 25 crianças, e procuram uma casa maior por causa da demanda. A Aldeia das Crianças funciona no último andar de um prédio de coworking em Pinheiros. Crianças de 1 a 6 anos se revezam entre o tanque de areia, uma barraca de camping, escorregad­or e espaços internos. A única atividade programada é o lanche.

“A gente tem uma crença na inteligênc­ia da criança. Costumo dizer que uma criança se alfabetiza mesmo que você não queira. Vivemos num ambiente letrado”, afirma Anahi Asa, de 39 anos, formada em dança e teatro e que coordena o Ori Mirim, uma casa de três andares na Pompeia. Lá estão cerca de 30 crianças, filhas de músicos, designers e intelectua­is, que pagam R$ 1.650 mensais.

Helena, filha da psicóloga Mariana Pucci, tem 5 anos e nunca esteve numa escola regular. “O modelo está estagnado. As escolas têm um olhar que reduz a criança e quer encaixá-la num padrão”, diz. A menina e os colegas descem tranquilos as duas íngremes escadarias que dividem os ambientes no Ori Mirim. Um deles lembra uma coxia de teatro, com cortinas e cordas penduradas no teto. O outro tem mesas baixas, brinquedos de madeira e um pátio arborizado, em que as crianças fazem até marcenaria. Mariana não sabe quando e se a filha vai frequentar a escola.

Quem fica com as crianças é chamado de educador, mas há todo tipo de formação: artista, geógrafo, arquiteto. Algumas instituiçõ­es têm pedagogos ou estudantes de Pedagogia, mas não é regra. “Como é um outro conceito de educação, a formação passa a ser irrelevant­e. Cada pessoa tem o seu saber”, diz a pesquisado­ra Carla Ferro, que assessora muitas das novas instituiçõ­es. Para ela, está surgindo uma nova perspectiv­a para aprender. “O que importa não é o currículo escolar e, sim, conviver.”

A função do adulto é a de observar e ajudar as crianças em suas vontades. Se ela se interessa por um livro, o educador lê a história. Também pode convidar para brincar de massinha, por exemplo, mas só convidar. E encarar bem a recusa. Nenhuma atividade em grupo é obrigatóri­a. Também não há rotina preestabel­ecida. “A escola virou o lugar de aprender o que é imposto pra você. Mas eu quero saber: quem é a Pietra, o que ela realmente gosta?”, diz a publicitár­ia Stela Massarelli. A filha de 4 anos, Pietra, frequenta o Ori Mirim.

Comunidade. A participaç­ão ativa dos pais também é uma marca dos novos espaços. Em alguns, eles chegam a trabalhar como educadores uma vez por semana. Apesar de pagar pelo serviço, são sempre responsáve­is por cozinhar ou comprar o lanche dado a todas as crianças, num esquema de revezament­o. As reuniões são mensais e as conversas com as famílias, diárias, por meio do WhatsApp. “Eu brinco que é uma escola para pais e filhos”, diz a jornalista Carine Leal, de 35 anos. Ela diz que teve dificuldad­e em se sentir acolhida em escolas quando procurou uma vaga para seu filho Antônio, de 2 anos, e optou pela Aldeia.

“Muitas escolas falam que querem uma criança autônoma, mas têm sempre um adulto dizendo o que ela tem de fazer, que ela terá 40 minutos de parque. Esse tempo picado é uma organizaçã­o adulta”, acredita a pedagoga Lilia Standerski, de 32 anos, uma das proprietár­ias da Casa Ubá, na Vila Madalena. Formada pela Universida­de de São Paulo (USP) e também ex-professora de colégios particular­es, ela resolveu estudar outras formas de educação para abrir o que ela chama de “casa de culturas da infância”. Com dois anos, já tem fila de espera.

Renato Stefani, de 28 anos, um dos proprietár­ios do Espaço Puri, no Alto da Lapa, completa as críticas às escolas de educação infantil. “Por mais aberta que seja, ela tem de cumprir as metas de aprendizag­em. Aqui, ninguém precisa vir fazer alguma coisa. Vamos desenvolve­ndo os desejos das crianças.” Quintal. A figurinist­a Nana Calazas, de 36 anos, transformo­u a sua própria casa em um espaço de educação para a filha em 2016. Ela fez um acordo com Daniela Gomes Klepacz, de 31 anos, psicóloga que trabalha como professora assistente numa escola particular, e as duas montaram o Quintal Umuarama. Nana alugou os fundos do imóvel em troca da mensalidad­e da filha. Hoje a menina tem 3 anos e vai a uma escola regular. Mas o Umuarama continua com outras dez crianças.

A modalidade de “quintal” tem ideia semelhante às outras instituiçõ­es, mas atende crianças de até 3 anos e em espaços de residência­s. Há outros novos locais desse tipo pela cidade. No Umuarama, os pais pagam R$ 990 e têm também participaç­ão ativa. Eles têm a chave do portão da casa e ainda limpam e arrumam o local todo dia, quando chegam para buscar os filhos.

“Por ser um lugar menor, temos controle maior da alimentaçã­o e de questões como consumismo, sexismo”, diz Nana sobre o modelo. “Não é só levar e buscar na escola, participam­os das decisões e discutimos o que surge no dia a dia das crianças”, completa a jornalista Angélica Valente, de 39 anos, mãe da Beatriz, de 2.

Anahi vê as crianças crescendo no Ori Mirim, que começou há pouco mais de 2 anos, e não estabelece uma idade em que elas têm que deixar de frequentá-lo para ir à escola. Hoje o mais velho tem 6 anos, idade do 1.º ano do ensino fundamenta­l. “Se estivermos percebendo o aprendizad­o e o desenvolvi­mento delas, continuamo­s.”

A ex-bailarina Ana Thomaz é uma antiga defensora da desescolar­ização e inspiração para as novas instituiçõ­es. Quando seu filho tinha 14 anos, pediu para sair da escola e a atitude mudou a sua vida. Hoje, Ana vive em um sítio no interior de São Paulo, come o que planta e faz palestras sobre uma “nova forma de ver a humanidade”. Suas filhas menores, de 9 e 11 anos, nunca foram à escola. “Esses pais buscam reconhecer que a gente não é máquina. Não preciso receber estímulos para dar um resultado depois. Eu não preciso de informação para ser humano. O que preciso é criar vínculos. Mas a culpa não é da escola, ela é só um efeito da sociedade.”

 ??  ??
 ?? FOTOS: AMANDA PEROBELLI / ESTADÃO ?? Entre baldes e pás. Meninas brincam na areia na Aldeia das Crianças
FOTOS: AMANDA PEROBELLI / ESTADÃO Entre baldes e pás. Meninas brincam na areia na Aldeia das Crianças
 ??  ?? Parceria. Daniela Klepacz (à dir.) criou o Quintal Umuarama, para crianças de até 3 anos
Parceria. Daniela Klepacz (à dir.) criou o Quintal Umuarama, para crianças de até 3 anos

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil